quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Paráfrase de Roda Viva (Chico Buarque, 1967)

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração


Quarenta anos depois
gira a moderna roda viva.

Estanque no cruzamento próximo ao escritório, Amanda fala ao celular com a empregada doméstica e aguarda o sinal abrir. Carros para cá, outros para lá.
O mundo cresceu de repente após o nascimento do filho Augusto. A rotina tornou-se uma roda-viva e carrega o destino com ela. Amanda não tem mais voz ativa e tem dias em que se sente como quem partiu ou morreu.
O sinal abriu. Ninguém andou. Carros parados de lá, carros atravessados aqui e ali. O tempo rodou naquele instante, nas voltas do coração de Amanda, cansado, na súplica ao pião para que rode as horas rápidas até a noite.
No escritório, os prazos a esperam —, nadar contra a corrente até não poder resistir é a solução — sentindo, ao final da manhã, o quanto deixou de cumprir. O tempo rodou naquele instante: o cliente adentra o barco navegante do dia de Amanda. Analisa com olhos críticos aquilo que havia sido feito. Para ela, a mais linda roseira que há. O cliente apenas enxerga os espinhos e insiste para que tudo se inicie outra vez. Amanda quer rodar o mundo e estar às voltas com o seu coração.
Almoço em casa com o filho e o marido, mas a mulata não quer mais rodar. Sequer adianta a serenata de Amanda ao pé do ouvido da empregada. Aquela roda de samba acabou. Amanda chora no banheiro, bem baixinho. A roda viva carrega a sua viola para lá e o tempo gira mais outra vez naquele instante.
No escritório, o moinho segue seu passo de roda-gigante. No supermercado as roseiras cultivadas por Amanda são arrancadas em um momento pelos números impiedosos da caixa registradora em troca dos poucos melões. Em casa, do marido, no peito, a saudade cativa. Tanto que faz força para o tempo parar. Não consegue e rende-se mais uma vez à roda viva, que carrega a saudade para lá. É hora de preparar o próximo dia. É hora de corrigir o menino. É hora de procurar outra mulata, ou uma alemã que lhe sirva.
A roda-gigante gira em câmera lenta. Amanda faz um samba, torra a sua roseira e aposenta a viola do seu coração. A fogueira de Amanda queima a roda viva em um instante sem pensamento.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Oficina 39 no lançamento de Ensaios Íntimos e Imperfeitos

Luciane, Assis, Marinella, Stela e Juliana
Gabriela, Stella, Marinella, Assis e Mariza

Confiram a gente aí no lançamento do livro Ensaios Íntimos e Imperfeitos, do professor Assis Brasil, que aconteceu no dia oito de outubro, na Livraria Cultura.

sábado, 30 de agosto de 2008

Início, meio e fim

Minha sugestão para o tema da antologia é: "Início, meio e fim".

Porque nem todo o início é um começo
Nem todo meio tem um ponto final
E o fim nem sempre acaba

bjbj,
Ana

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Idéia para motivo de livro

Minha idéia é... tchanám! O amor! Em todas suas formas. E meus motivos são:

1) "É só o amor, é só o amor / que conhece o que é verdade!" (R. Russo (ou é Camões?))
2) É o amor "che move il Sole e l’altre stelle" (Dante)
3) Os contos apresentados até agora (Ana, Ana, Viviane, Cícero) tratam de um jeito ou outro sobre o amor.
4) O mundo está precisando de amor, não é?

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Abertura para uma personagem

(transcrito do livro “Desvarios no Brooklyn”, de Paul Auster)



Eu procurava um lugar sossegado para morrer. Um dia alguém me recomendou o Brooklyn, e já na manhã seguinte saí de Westchester e fui sondar o terreno. Fazia cinqüenta e seis anos que eu não punha os pés ali e não me lembrava de nada. Eu tinha três anos de idade quando meus pais se mudaram do Brooklyn, mas instintivamente me vi regressando ao ponto de partida, rastejando, como um cachorro ferido, de volta ao lugar onde eu nascera. Visitei uns seis ou sete imóveis junto com um corretor local, e no final da tarde já havia alugado um apartamento térreo de dois quartos e jardinzinho nos fundos na rua Um, a meio quarteirão de distância do parque Prospect, num prédio de arenito pardo. Eu não sabia quem eram os vizinhos e também não me interessava saber. Todos trabalhavam das nove às cinco, nenhum tinha filhos, portanto o prédio devia ser até certo ponto tranqüilo. Mais do que tudo, era isso que eu buscava. Um final silencioso para uma vida triste e absurda.

por Leonardo Wittmann

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Início de narrativa... pelo autor

NOTICE

PERSONS attempting to find a motive in this narrative will be prosecuted; persons attempting to find a moral in it will be banished; persons attempting to find a plot in it will be shot.

BY ORDER OF THE AUTHOR,
Per G.G., Chief of Ordnance.


Fonte: Huckleberry Finn

terça-feira, 8 de julho de 2008

A personagem e o destino

Érico e seu destino

Acabara de fechar o dicionário e mirava o acaso: destino era a personificação da fatalidade a que supostamente estão sujeitas todas as pessoas e todas as coisas do mundo; sorte, fado, fortuna e seguiam as terminologias. Carla entrou rápido na sala e perguntou o quê Érico fazia ali sentado numa hora daquelas. Eu sempre ocupada, — disse — formigando pela vida.
— Podes continuar formigando por aí meu amor. Estou a pensar em nosso destino e hei de escrever a nossa história qualquer dia desses. Carla deu de ombros. Saiu. Ele ficou prostrado e deixou aos poucos o personagem ganhar a sua forma: inicia ao abrir a janela e admirar o jardim ensolarado. Ficção que se cria pesquisada e descrita com os destinos que a vida coloca para cada personagem. É necessário narrar a ação do personagem. To show and to tell, pensou. Ouviu uma voz atrás de si e virou-se.
— Todo o personagem necessita de mãe. — Dona Glória se acomodou na poltrona e acendeu um cigarro. Érico sorriu e beijou-a na testa.
— Precisa de mãe e destino. — Acrescentou ele. — De preferência uma mãe que não fume quando sua nora é médica e está na sala ao lado.
— Bobagem! Sem contar com a experiência de arrepiar com a qual se deve formar o conflito humano que há de envolver a história. Replica Dona Glória, com olhar furtivo.
Uma motivação meio doida invadiu Érico por instantes. Sentiu uma paixão sem fronteiras com a possibilidade de escrever algo, um roteiro de uma peça, algo assim que fosse. Seus olhos brilharam. Não ouviu as palavras seguintes. A concentração o absorvia.
Tomou em suas mãos uma folha de papel e, torcendo-a, simulou uma câmera. Virou-se novamente em direção à janela e “filmou” seu personagem e algumas reflexões. Não, muito vago para uma câmera. Não consigo fazer., pensou.
— Quem sabe um roteiro sobre uma loura doce, tipo aquela que transei há uns anos, quando solteiro, e que amava chocolates, lembra mãe?
— Lembro sim. Aquela que ficou enorme de gorda. Claro. Seria um ótimo roteiro. Mas onde se esconde o conflito. A história tem que ter o conflito. Quem sabe se essa loura ganhasse uma aposta e...
Érico perdeu-se de novo em devaneios e seus pensamentos não paravam mais de rodar, rodar, aquela loura, com chocolates, num bar, que ficou muito gorda e se encontrou com ele, quase se apaixonou e daí a Carla não aparecia quando os filhos sumiram e a separação já faz tempo quando for pra casa com seus três amiguinhos bichinhos com os quais conversava...
Carla entrou.
— Érico! Acorda! Que isso! Parece louco! Vem jantar. Que cheiro horrível de cigarro! Que envergonha dona Glória! Olha as crianças!
Carla saiu. Dona Glória teve que rir. Foram jantar.
Érico cruzou a porta e foi abalroado por um dos trigêmeos — Frederico — seguido de perto por Cácio e ultrapassado por Marcelo. Érico descreveu para sua câmera aquele espaço como se passeasse pela cidade: os carros eram as crianças e as empregadas eram os caminhões. A mãe — uma jamanta a ocupar espaço — e Carla, um trator que arranca tudo que encontra pelo caminho. Os sofás da sala de estar e as camas eram parques. A televisão, o teatro principal dessa cidade. Nela, não estava passando o desenho animado, mas sim, uma peça.
Os corredores e acessos que contornavam os móveis ao longo do apartamento equivaliam às ruas de uma grande metrópole. Havia restaurantes — os quais resumiam-se à cozinha, à sala de jantar e à churrasqueira — de onde brotavam os mais variados aromas culinários em dias alternados. Havia, como em toda a cidade moderna que se preze, aquilo que ninguém deseja ver, sentir ou ouvir. Descuidados podiam sofrer um assalto no meio da rua por pequenos pivetes — o cachorrinho de estimação. Essas ruas também podiam estar tomadas de lixo — brinquedos espalhados. A favela — na verdade a área de serviço — revelava a bagunça da vida. Local onde não existia sossego. As roupas emboladas, esperando para entrarem na máquina de lavar eram as pessoas da favela. Todas umas sobre as outras. Sem regras.
Os ciclos da lavadora e da secadora equivaliam aos ciclos diários: de dia — na lavadora — o trabalho; de noite — na secadora — o martírio familiar com a ausência de sono e conforto. Em ciclos constantes, essas pessoas atravancavam-se na sua existência.
Todos jantaram.
Érico se perdeu pela casa com sua câmera. Achou uma coisa: a banheira de hidromassagem. Algo capaz de interagir com o personagem.
Descreveu para sua câmera o espaço infantil — o quarto das crianças. Lá, encontrou Frederico e fingiu ser quem não é, segurando a câmera. Era a hora do diálogo — Faz de conta que sou um câmera-man. — ganhou a atenção do filho para a conversa.
Iniciou-se uma discussão e Érico mostrou e disse suas poucas razões. Viu-se contrariado pelos trigêmeos. Largou a câmera e mudou o seu destino, “personificação da fatalidade a que supostamente estão sujeitas todas as pessoas e todas as coisas do mundo; sorte, fado, fortuna” ao esbarrar no discurso direto de Frederico, no indireto de Cácio e nos implícitos do Marcelo. Exausto, largou a folha de papel.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

200 anos da família Fagundes em quinze linhas

Lídia Fagundes não tem descendência. Casou-se, separou-se, e casou-se de novo, mas não teve filhos porque acha que o mundo está prestes a acabar. Teve nove irmãos, dos quais oito já morreram – na guerra. Salvou-se só Bernardo, que sempre foi diferente, nunca teve o sentimento de pertencer à uma comunidade, nem sequer à família – imaginem então se ia lutar pelo país. Em vez disso, isolou-se em seu mundinho de fumadores de maconha, e por isso foi imediatamente repudiado pelo pai, Odílio Fagundes, coronel do 6º Batalhão de Engenharia de Combate do Exército. Odílio dedicou toda sua vida ao Exército, mas foram, esses, tempos de paz. Deixou seus dez filhos ao cuidado de Marília, seguindo nisso o exemplo de seu pai, Rodrigo, também militar. Rodrigo Fagundes nunca disse com exatidão quantos filhos teve – às vezes eram cinco, às vezes eram seis –, nem se os teve todos com Raquel, sua mulher. Rodrigo era filho de um padre, o Padre João Ambrósio, da Igreja da Santa Maria da Puríssima Conceição, que foi excomungado pela Santa Sede por não cumprir os votos e por outros desmandos. Da união dele e uma mulher cujo nome se perdeu nasceu Rodrigo, e dizem as más línguas que ele teve outros seis irmãos, bastardos. O Padre Ambrósio sempre o negou. Difícil saber, só resta a lenda, já se passaram quase 200 anos.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Sobre o implícito

Para entender o implícito, acho legal esta letra do Bob Dylan, onde, o mais importante, ele diz em quatro palavras, que não dizem nada e dizem tudo. Serve também, quase qualquer conto de Hemingway, eu acho. Mas esses não dá para postar aqui. Tem um tão legal, The Big Two-Hearted River, muito longo, dividido em duas partes, que trata de um jovem que sai, sozinho, dois dias, para pescar. A descrição do rio, as águas, a pesca, etc., é tão boa que para mim isso foi tudo. Só anos depois li que nesse conto estava implícito o assunto da guerra. Não me lembro bem se o jovem tinha escapado de ir à guerra, ou tinha um trauma de guerra. Mas de tão implícito, ou de tão maravilhoso que era "o superficial", eu não percebi. Bom, nas quatro palavras "vazias" do Bob Dylan dá para perceber que o "narrador" (vale isso para letras de música?) está dizendo tudo menos o mais importante.

Most of the time
I'm clear focused all around,
Most of the time
I can keep both feet on the ground,
I can follow the path, I can read the signs,
Stay right with it, when the road unwinds,
I can handle whatever I stumble upon,
I don't even notice she's gone,
Most of the time.

Most of the time
It's well understood,
Most of the time
I wouldn't change it if I could,
I can't make it all match up, I can hold my own,
I can deal with the situation right down to the bone,
I can survive, I can endure
And I don't even think about her
Most of the time.

Most of the time
My head is on straight,
Most of the time
I'm strong enough not to hate.
I don't build up illusion 'till it makes me sick,
I ain't afraid of confusion no matter how thick
I can smile in the face of mankind.
Don't even remember what her lips felt like on mine
Most of the time.

Most of the time
She ain't even in my mind,
I wouldn't know her if I saw her
She's that far behind.
Most of the time
I can't even be sure
If she was ever with me
Or if I was with her.

Most of the time
I'm halfway content,
Most of the time
I know exactly where I went,
I don't cheat on myself, I don't run and hide,
Hide from the feelings, that are buried inside,
I don't compromised and I don't pretend,
I don't even care if I ever see her again
Most of the time.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Patrícia e Isadora chegaram a casa às três horas e encontraram o pai e o irmão sentados na sala de estar tomando um café. Poderia ser uma reunião agradável entre pai e seus três filhos. Também poderia ser que os objetivos dos filhos não fossem alcançados. Tudo isso dependeria do curso do encontro.
— E então, pai, pensou bem no assunto? — perguntou Isadora. Seria bastante sensato que ele houvesse decidido como os três filhos desejavam.
— Querida filha minha — respondeu seu Leopoldo ao se remexer na cadeira e calmamente levantar — há mais coisas entre o céu e a terra do que pode constatar a sua jovem irrequieta filosofia. Vamos com calma com esse tal assunto de vocês.
Fez-se sentir o silêncio na sala e os três se entreolharam. Seu Leopoldo sabia que eles estavam cruzando os olhares, mesmo estando de costas para todos, servindo-se de café na bancada. Não iriam conseguir o que queriam assim tão fácil. Não é que quisesse teimar com o pedido dos filhos. No fundo sabia que eles tinham alguma razão. Também sabia que existiam motivos bem pessoais e próprios da personalidade de cada filho que alçavam seus objetivos. Não queria se render a eles.
Devolveu, então, a Isadora a primeira parte de seu argumento questionando-a sobre os destinos daquela casa, caso ele saísse de lá. Ela titubeou e tentou esconder dele que venderiam a casa e que parte do dinheiro seria usada para pagar a dívida de sua empresa. Mais silêncio arrancou olhares cruzados dos três filhos. Isadora calou-se. Patrícia, então, aventurou-se:
— Mas pai, ainda que esse seja o problema de Isadora, estamos pensando em sua saúde. Será que dá para pensar nisso também, por favor, e parar de teimar com o que não tem mais tanta importância?
Seu Leopoldo sentou-se na mesma poltrona novamente e mirou o dia lá fora. Estava frio. Por segundos passou em sua mente Patrícia quando pequenininha. Sempre argumentadora, prestativa e concentrada. Boa menina. Olhou para a filha com carinho e disse-lhe:
— Bem, é verdade, mas também é certo que se eu for para lá você vai precisar estar menos comigo e poderá dedicar mais tempo ao seu trabalho e a sua família, né?
Patrícia ficou visivelmente contrariada e procurou demover o pai da idéia de que não o visitaria. Claro, sabia que isso não era completamente verdade. Ele estava certo. Fazer o quê, se estava difícil essa vida de profissional, mãe, dona-de-casa e filha de pai que gosta de chamegos.
Seu Leopoldo deu um risinho escondido. Olhou para o filho mais velho, Elias, como que esperando o desfecho.
Elias era providente e sensato. Seu Leopoldo sabia que os interesses dele eram bem mais obscuros, no entanto. Esperou para ver como seriam revelados. Elias fez um movimento levando a mão direita à testa. Olhou para fora com ar de preocupação.
— Pois é, pai. Só que parece que dessa reunião de família haverá de sair uma decisão. Somos três contra um, aqui. Sabes que será melhor para você estar com pessoas da sua idade, divertindo-se e não mais apegado ao trabalho e à empresa. Eu posso tocar o negócio muito bem sozinho.
Seu Leopoldo não moveu uma expressão sequer. Entristecido estava por não poder ouvir dos filhos seus sinceros motivos. Mais triste ainda ficava em saber que eles preocupavam-se tão pouco com o seu bem-estar. Lamentou que a esposa não estivesse mais presente. Ouviu de Elias que mesmo que ela estivesse lá a decisão estaria tomada. Seu Leopoldo foi buscar outro café. Serviu-se. Virou-se para os filhos, olhou-os com carinho por um instante e encerrou o assunto:
— Essa casa é minha alma. A empresa ainda é meu motivo de viver ,e, as visitas da Patrícia e dos netos são minha maior alegria. Nenhum lugar, por mais aconchegante, alegre, confortável substituirá o que me resta. Desculpem esse velho gagá, mas daqui só para o céu! Estamos conversados!

domingo, 22 de junho de 2008

3 X 1

- Nem por um decreto.
O pai não queria ir para um asilo de jeito nenhum.
- Não estou velho.
Os irmãos entreolharam-se. Cléber pigarreou. Era o primogênito. Fumante. Abriu a boca para dizer algo, mas Verinha fez-lhe um sinal com a mão.
- Papi, ninguém aqui está dizendo que você está velho -, Verinha tinha um jeitinho doce de falar, os olhinhos sempre sorrindo. Os irmãos concordaram. A mana continuou:
- Pensamos no seu bem. O senhor não gosta de dançar? Pois então, lá tem bailes da terceira idade aos finais de semana. Pelo menos o senhor se diverte, conhece pessoas novas.
- Gosto da minha casa. Daqui, só pro túmulo.
- Mas pai... -, Cléber começava a impacientar-se. Remexeu-se na cadeira. Apalpou os bolsos em busca do cigarro. Novamente Vera entrou em cena:
- Tem até hidroginástica.
- E enfermeiras gostosas -, completou Rita, lixando as unhas. Os irmãos repreenderam-na.
- Gente, o que foi que eu disse de errado?
O pai riu. Não era um riso prazeroso, mas sarcástico.
- Não vendo, não troco, não dou. Esta casa é minha e repito: daqui, só pra sete palmos abaixo da terra.
Estava lúcido, o velho desgraçado. O jeito era ganhá-lo no argumento.
- Pai, você já nem consegue subir as escadas, passa o dia sentado na sala. Pra quê precisa de um casarão desses? Dá pra construir três prédios só no terreno dos fundos.
Verinha cutucou o irmão. Será que dava para ser mais sutil?
- Vocês querem é me enterrar vivo.
- Ai, papi, que idéia! Nós vamos lá visitar o senhor sempre que der, não vamos? Ó, viu? Jamais o abandonaremos.
- Nunca vêm me ver... nunca -, balbuciou o velho para si. E soltou um pum.
O cheiro se espalhou pelo ar.
- Papai! -, Rita torceu o nariz.
- Velho porco -, ofendeu Cléber.
Verinha nada disse.
Seu Antenor bateu com a mão na perna, deu o assunto por encerrado. Pediu a bengala. Levantou-se trêmulo, encaminhou-se para o sofá, não sem antes retrucar:
- Se o lugar é assim tão bom, porque não vão morar lá vocês?

O combate

Cumprimentaram-se. Todos os dias, “Olá, tudo bem?”, assim davam início à conversa. Almoçavam juntos pontualmente no mesmo horário, na mesma mesa do asilo, uma mesmice sem fim. Mas isso não impedia de saudarem-se como se não encontrassem um ao outro há anos. Andavam repetitivos, os amigos de infância. Gagás?

- Tudo. Só peço para não falar no Internacional -, gemeu o sofredor. Os colorados haviam perdido nos pênaltis.

Antenor desanimou, adorava falar do time do outro. Torcia contra o Inter muito mais do que a favor do Grêmio. Era um enchedor de saco fenomenal. Juvenal já o conhecia e às suas implicâncias, por isso cortava seus naipes tão logo sentavam à mesa. Almoçavam todos os dias juntos, já contei isso?

O velho gremista sugeriu falarem sobre o Lula, então. Taí outra coisa que não caía bem na mesa. De futebol, fala-se numa boa. Agora, de política? Não dá. A política não muda nunca. E de mesmice já bastava a rotina do asilo.

A opinião de Antenor sobre o presidente, o colorado Juvenal também repudiava. Não que discordasse, é que diariamente, os dois almoçavam juntos e falavam sobre política. Política e futebol. Citar sempre as mesmas coisas cansa o interlocutor. Antenor viu um passarinho pousar na grade da varanda e sugeriu o assunto morcego, “Que morcego? O Batman?”, pensou Juvenal, mas deixou o outro seguir com a idéia.

- Os bichinhos de estimação do Batman. Morcegos verdadeiros. Eles fizeram casa deles no meu sótão. Mas é como se fosse na minha casa. Na minha cabeça.

Juvenal riu. Esse Antenor vivia nas nuvens. Trouxeram uma gamela com feijão. Juvenal e Antenor se enfrentaram com olhos opacos. Os dois gostavam do toucinho que boiava no caldo aguado. Sempre um pedaço apenas e aquela guerra na mesa. Dessa vez, Antenor levou a melhor. Juvenal emburrou-se.

- Eu sempre soube que tu tinha morcego nesse cérebro. Há muito tempo – provocou.

Antenor não ouviu. Deliciava-se com o pedaço suculento. Ria por dentro. Do que o outro estava falando, sobre morcegos? Começou a falar sobre o Internacional e o Lula. Juvenal, ainda pensando no toucinho:

- Isso não vale.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Atitude

Cíntia e Alfredo já haviam chegado. Sentados na varanda, tomavam chimarrão com o pai enquanto esperavam Olívia, a irmã mais nova, encostar o carro.
- Oi pessoal, desculpem o atraso – disse ela ao subir o último degrau. Beijou e abraçou o pai que, depois de perguntar sobre a viagem, pediu-lhe que sentasse ao seu lado. Aquela conversa não seria fácil, por certo.
- Olívia – falou Alfredo, o irmão mais velho. – Já adiantei à Cíntia que está muito difícil cuidar da estância. E prosseguiu a falar sobre como as coisas mudaram desde que a mãe morrera. Dois homens sozinhos em uma casa, o pai doente, sem poder ajudar com nada, nem mesmo com os animais.
- Sei disso. Por que, então, não vendemos a fazenda e compramos um sítio? – sugeriu Olívia. - É menos trabalhoso. Mas Alfredo, de olhos baixos, disse-lhes que já estava cansado de viver no interior. Na verdade, havia conseguido um emprego na serralheria da cidade.
- Mas o pai precisa de companhia – falou Cíntia. – Alguém que cuide dele o tempo inteiro.
Cíntia morava na cidade vizinha com o marido e dois filhos.
- Uma mulher seria o ideal – precipitou-se Alfredo.
-Talvez – respondeu Olívia. – Ou alguém preparado para cuidar com carinho de pessoas idosas – e logo emendou: - na verdade, de pessoas especiais.
O pai, que ouvia a tudo quieto, sabendo do peso que se tornara para os filhos, primeiro disse-lhes que ele havia cuidado do nono deles até o fim. Mas entendia que os tempos eram outros e que cada um tinha seus compromissos e a própria família. Por fim, comunicou o consentimento que todos, entre receios e dor, queriam ouvir:
- Façam comigo o que acharem melhor.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Confissão

Por Mauro Paz

Minha paixão é doida, plena e incondicional. Não podia ser diferente. Ainda novo, invadiu-me e fez de mim um eu. Escravo voluntário me formei. Com o tempo, ela me ensinou as cores, as ruas, as dores e a compreensão de que posso e preciso saber sempre mais.

Mesmo a maltratando, vez que outra, nunca deu as costas. Ao contrário, me afaga e alimenta. Sem ela eu nada seria. Por ela vivo e através dela viverei.

Um dia é pouco pra homenagear ela que todo dia nos faz falar.

Vida longa à Língua Portuguesa!


10/06 – Dia da Língua Portuguesa
Obs.: Desculpem-me por abrir o coração aqui neste espaço, mas precisava desabafar.

domingo, 8 de junho de 2008

Exercício Diálogo

Fileira 9, junto ao maldito corredor. Na poltrona do centro, a mãe. Na janela, o menino.



- Fica tranqüilo, meu filho, o logo chegamos.

- E se o avião cair na água, por onde saímos?



A mãe retira o folheto explicativo inserido à frente do acento e indica ao menino.



- Pela saída de segurança, duas fileiras adiante.

- Mas se a asa estiver pegando fogo?

- Há saídas frontais.

A mãe repara minha apreensão.

- Não repare, é a primeira vez que ele voa.

- Quando pequeno também tinha medo de voar. Hoje faz parte da minha vida.

- Que maravilha. No que trabalha?

- Sou piloto.

A mãe cutuca a criança.

- Viu, meu filho, o moço é piloto. Voa todo santo dia e nunca lhe aconteceu nada.

O menino admira-me boquiaberto.

- Bem. Passei por alguns sustos.

- Sustos?

- Certa vez, ainda na escola de aviação, voava distraído, baixo. Quando dei por mim, estava preso na chaminé do Gasômetro.

- Nossa. Não me lembro de ter visto nada nos jornais – diz a mãe.

- Abafaram o caso.

- Por que o não está pilotando? – tasca o menino.

- Não é essa minha companhia, estou de carona.

- Pra qual companhia trabalha? – diz a mãe.

- VASP.

- AVASP não faliu?

- Sou um dos últimos lá. Fazemos apenas vôos restritos para o governo – aproximo-me da mulher – Informação confidencial, hein?

sábado, 7 de junho de 2008

Leopoldo ganha a aposta?

Nunca vi tanto luxo. Mulheres desfilam de chapéu. Ficam lindas assim. Que delícia o champagne, vou tomar mais uma taça. Chego a me sentir feliz nesta tarde azul-de-maio. Quase não faz frio. Quanta gente veio ao prado. Não sabia que Grande Prêmio era bom. Não fosse o sonho, não teria vindo. Há tempos não sonhava com ela. Mas ontem, de novo, aconteceu. Vestida de branco, entrou no quarto, sentou-se na cama e ficou me olhando. Não sinto medo quando aparece. Desta vez, falou sobre cavalos. Perguntei se eram os da estância. Enigmática, sorriu. Cavalos em dia de festa – sussurrou - jogue no número oito. Quis saber mais; em vão. E antes que eu pudesse abraçá-la, sumiu. É sempre assim, então acordo e penso em tantas coisas. Até hoje não me conformo, partiu de repente. Foi numa tarde de maio, como esta. Só eu sei como sofri ao receber a notícia da sua morte. Culpa e remorso, mas não quero pensar nisso agora. Hoje de manhã, abri o jornal e lá, na página do turfe, a foto do cavalo branco, o número oito do páreo principal. Não acreditei. A legenda da foto dizia tratar-se de Ciclone, o azarão. Num impulso, decidi. Vou apostar neste cavalo.............................................................................. e se alguém me vir apostando, o que vão achar? pensando bem, ninguém tem nada a ver com isso, dia de grande prêmio, preciso ter coragem, nem sei fazer a aposta, deve ser por aquela escada, um entra e sai de gente, a mulher de lábios carnudos me olha, os seios pulam do decote, perfeitos, quero tocá-los, gosto destes seios, duas taças, o champagne a escorrer, os bicos dois morangos a crescer na minha boca, ela sorri, me faz sinal, as faces queimam, vermelho-morango, não vou olhar, quem é o homem? acompanhada? disfarço, cadê o guichê? faço logo a aposta, assisto o páreo e vou embora, número oito, não foi o que disse, no sonho, minha falecida esposa? melhor me apresssar, quase cinco horas... apostei dinheiro grande, devo ter louquecido, tudo no azarão, foi dada a largada, os cavalos correm, Ciclone! quero gritar mas não grito, na estância eu no cavalo baio, o nome era Ciclone, agora lembro, a casa na beira do riacho, longe onde ninguém podia ver, nós dois em pelo sobre o pelo do cavalo baio, e se eu te perder? te perguntava, sem nada enxergar, neblina mansa cobrindo o campo, cavalos correm embolados, não consigo ver Ciclone, nuvem de pó e cascos, por que esqueci o binóculo, cavalos viram a curva, parecem todos juntos, locutor grita, não entendo, Escorial ultrapassa Aragon... Escorial na dianteira, Ciclone, vai Ciclone, reta final, Ciclone se aproxima pela esquerda, ouvi direito? Meu São Domingos! dá uma força, coração dispara, quero ganhar, só mais cinqüenta metros, delírio geral, em segundos o resultado.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Criar espaço para ?

O condomínio é comum. Incomum é a decoração do apartamento. Tintas, plantas, móveis, livros, tudo devidamente desorganizado. O apartamento é financiado. Há passarinhos, mas não há gaiolas. Não há cama, só há rede. No olho do furação, um computador. Solitário. É a mais valia, escrita, descrita. O apartamento ainda não está pago. Já precisa de reforma, reboco mofado, fios vermelhos, azuis, tudo jogado. O vidro da janela também está trincado. Mas é tudo muito limpo, banheiro limpo, muitos banhos. O jardim é no meio do apartamento, com mudas de árvores, flores, trepadeiras e fotos antigas.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Criar um espaço para ...

A luz do salão principal é fosca. O lugar é amplo e bem arejado, com janelões de ferro e vidro, ornados com cortinas clássicas em tons pastéis e marinho, bom para dissipar a fumaça dos charutos e das velas. Há muitos lugares para sentar, normalmente ocupados. Grandes vasos de vidro, que nascem do chão, abrigam ramos de lírio e copos-de-leite. Das paredes pendem telas antigas, abstratas, pintadas pelo mesmo alguém cujo nome não é legível. Ao lado da porta principal está o piano, sobre ele, os cinzeiros limpos. No fundo da sala, o bar. Bancos altos e estofados, bancada de madeira lustrosa e escura como o assoalho, muitas bebidas. Sentado no último banco, um homem calvo acaricia nostalgicamente o saxofone, fazendo-o gemer alto.
Um espaço para X

Uma sala ampla e limpa, mobiliada com economia. Um sofá de linhas retas, forrado com veludo preto, posicionado de frente para uma TV plasma fixa na parede azul hortência. Dois pufes brancos. Um móvel baixo, de madeira escura, apóia um aparelho de DVD e muitos filmes. Uma mesa redonda, com tampo acrílico transparente, suportada por um único pé de base também redonda. Duas cadeiras, estilo Luís XV. Sobre a mesa, uma orquídea branca. Uma reprodução de Escher domina a parede oposta à TV. O assoalho de tacos claro é despido de tapetes. Na parede em frente à porta de entrada, uma grande janela com as cortinas abertas traz a paisagem urbana para o interior. Por cima dos edifícios antigos vê-se o rio, ao longe. Ao lado da porta, um esguio totem de pedra da altura de um homem. Uma única porta liga a sala ao resto do apartamento.
Stela Rates

domingo, 25 de maio de 2008

criar um espaço para ... (ou o que é o que é)

Dois chinelos sobre a mesa. Um fogão velho com o forno aberto. Quase debaixo da mesa, uma batedeira quebrada. Uma metade de um tapete persa. Uma geladeira azul que guarda sapatos e roupas. Uma moldura vazia na parede. Uns trocados e um caderno de culinária sobre a pia. Um pôster colorido mas descascado. Uma televisão como floreira. Um cheiro de mofo misturado com vegetais frescos. Um cinto novo preso ao lustre servindo de forca. Dois chinelos sobre a mesa.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A personagem vai ao boteco

18:00 – O bar está lotado. Ângelo chega pede uma mesa e uma cerveja. O garçom consegue a mesa, mas esquece da cerveja. Ao contrário traz uma coxinha. Sem reclamar, Ângelo come a coxinha bem devagar. A devora, engole toda. Horas antes tivera se encontrado com ela. Mas agora ele só devora. E encontra camarões escondidinhos. Escuta música. Não há ninguém para conversar. Escuta a música e batuca.

18:37 – Ela chega. A coxinha vira coxão. Cerveja? Ângelo quer beber Maria. Mas Maria está sem interesse. Angelo não entende. Onde foi que errou? Angelo está sem colarinho. Enfim, sem colarinho ele bebe Maria gelada, acha tudo ótimo e vai para casa sonhar com o resto. Que resto?

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Criar espaço para...

O quarto tem um quê de escuro, apesar da janela aberta para o sol das onze. Na cama de ferro, dir-se-ia uma cama dupla de hospital, dois travesseiros brancos muito próximos, e a maior parte de um cobertor velho e xadrez, no ensaio da queda.

Um vinil gira na vitrola. Das caixas de som chega uma cantoria de monstro, kommienezuspadt, kommienezuspadt.

Pende de um prego no teto o que chamam mosquiteiro, e de um na parede o que chamam Marlon Brando (montado em motocicleta).

Sobre a mesa-de-cabeceira, herança de algum avô, uma garrafa de gim (dois terços vazia), um abajur esquecido aceso, marcas redondas de dedo no pó, e um telefone vermelho que toca.

No cômodo contíguo, uma voz quebradiça de menina repete: L mais A, LA, L mais E, LE, L mais I, LI, L mais O, LO, L mais U, LU.

A agulha encontra um arranhão, ha ha ha ha, ha ha ha ha, ha ha ha ha...

terça-feira, 20 de maio de 2008

Criar um espaço para...

Uma sala de vinte metros quadrados. Num canto, uma grande e pesada escrivaninha de madeira maciça, escura, que encobre parte de uma cadeira de couro marrom; noutro, uma cristaleira no mesmo estilo. Em toda parte, uma infinidade de objetos cuja contagem e descrição levariam dias. Pequenos tesouros afetivos, como a coleção de corujas. De todos os tipos, cores e tamanhos. Duzentas, talvez. Uma delas, multicolorida, pintada numa caixa de fósforo, lembrança da Colômbia; outra, de pano, presa por um alfinete a um quadrado de madeira, presente de um certo Romeu; uma terceira, de mármore branco. Muitos livros, de assuntos variados, em inglês, francês, português e catalão. Dezenas de dicionários, velhos e novíssimos. Um globo de pedra. Disputando o título de mais pesado da sala com a escrivaninha e o armário. Levíssimas e escassas partículas de poeira.

O quarto de

(Acho que ousei bastante. E acabei me impondo um exercício de estilo.)

As paredes do quarto são de um branco ininterrupto, sem quadros, sem espelhos, sem estantes ou prateleiras. Mergulhando por trás da cabeceira da cama, com as escamas pintadas em dois tons de azul e uma esteira de purpurina no lombo, some a cauda de uma sereia. No criado mudo do lado direito, sepultando-o, dezenas de livros formam uma montanha. No criado mudo do lado esquerdo, há um abajur e um copo transbordando água. O carpete do chão é de um gris claro imaculado. A mobília é simples, essencial e esvaziada. De um lado, duas cadeiras e uma mesa encostam-se à parede. Do outro, perto dos pés da cama, duas poltronas de vime cercam uma mesa baixa. Em um canto, com a tela virada para a parede, há um aparelho de TV. Em um outro canto, sobre guias telefônicos gastos, há um notebook iluminado, conectado a uma tomada. Na telinha do computador, uma atleta cruza a linha de chegada. Jogados no carpete sem cuidado, misturam-se uma calça, uma camiseta, umas meias e um par de sapatos.

Descrição criativa e narração que deriva do objeto:

O objeto se traduz em um pedaço de papel rígido — papelão branco — quadrado em sua forma, com uma área em torno de seis centímetros quadrados. Nessa pequena “bolachinha” de papelão há um desenho de um homem com aparência semelhante ao próprio dono. Em caneta azul, o homem parece envolto por incontáveis espirais, que tomam as sobras brancas do pequeno papel. De óculos e com cabelos bem crespos, expõe uma fisionomia preocupada. Com nariz alongado e rosto comprido, não revela de imediato a sua identidade, flagrada pela quase insignificante inscrição à direita: “Gutenberg”, sugerindo ser o alemão Johannes Gutenberg, aquele que primeiro contribuiu para a tecnologia da impressão e da tipografia no mundo, no século XV. O outro lado da “bolachinha” está completamente vazio, branco.

Gutenberg impresso em uma bolachinha de papel. Impresso apenas de um lado, deixando o outro vazio. Aquele que primeiro imprimiu na história surge pensativo no desenho, envolto em idéias espirais, tomando completamente o seu espaço. Como poderia ter adivinhado ele que estaríamos todos, hoje, em pleno novo milênio, assoberbados de espirais em torno de nossas mentes? O gênio da impressão literalmente desenhado e condensado em nódulos impressos. Estamos nós, também condensados em nossos mundos, impressos em nossas verdades, estáticos em nossas possibilidades? Como Gutenberg comprimido naquele papel. Gênio impresso ele é hoje, como nós, estampados na desordem do nosso tempo. Ninguém tem se lembrado, como Gutenberg significa no pequeno papel, de procurar pelo vazio do lado oposto. Você se lembra? Ou fica entre as espirais da vida moderna? Essas espirais do século XXI que pressionam a nossa cabeça.

Criar tipo característico para...

Aymah. Seu nome inscrito bem acima do espelho para identificar seu local reservado. Uma bolsa de água quente aquece a pequena poltrona de couro vermelho enquanto a dona não termina seu trabalho. Seu espaço se resume a mais ou menos um metro e meio de comprimento por um metro de largura. Em frente, imagens que se refletem no grande espelho. Em ambos os lados do espelho, painéis de cortiça exibem fotografias com imagens da terra natal de Aymah: o Japão; e, as instruções para uma metódica dieta seguida pela trupe. Na bancada, logo abaixo do espelho, estão todos os cremes para retirada da maquiagem, pincéis, lápis de olhos, blushes, sombras e batons. Há, ao lado das plumas vermelhas, uma caixinha de algodão e outra de lenços de papel. O copo d’água sempre repousa sobre a superfície e esvazia-se lentamente conforme ela se organiza para acompanhar o espetáculo. Na gaveta, na lateral, abaixo do painel de cortiça do lado direito, há chocolates. Doces que fazem doer menos. Doces que trazem a única alegria até a volta para casa.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

A moeda da Mariza

A moeda e o beijo

Moedas são comuns. A de um real tem mais valor. Compra mais. Ninguém despreza. Tem o miolo prateado, a borda dourada. Tem a cara e o número Um.



- Cara ou coroa?

Os dois pitocos disputavam a beijoca da Tininha. Todo mundo gostava da Tininha, mas ela disse que só daria um beijinho. E só seria na bochecha do Zezinho ou na bochecha do Bebeto. Zezinho porque era bem comportado e Bebeto porque fazia muitos e muitos gols na Educação Física. Pobrezinhos, pois! Tão novinhos, tão apaixonados e já acuados pela crueza feminina assim tão de perto, assim tão cinqüenta por cento. Cruel isso tudo. Mas Tininha valia a peleia. Era uma menininha cheia de graça, cheia de si.

A moeda era grande, muito maior que as pontas gorduchas dos dedinhos apaixonados. Zezinho olhou para a moeda, pensou, olhou mais um pouquinho e disse:

- Como assim cara ou coroa? Tem a cara da princesa, mas não tem a coroa do rei! Não quero mais brincar. Vou perguntar para a Tininha quem ela prefere beijar e pronto! Assim é mais fácil!

Coragem Zezinho, vá com calma, meu amiguinho. E se ela disser que prefere o Bebeto? Aí sim tu vais descobrir as lamúrias do amor...

- Não, não, não Zezinho! Assim não vale! Tem que ser na sorte, na moedinha. Mamãe disse que é feio trapacear. Vamos fazer assim: Cara ou Número Um?

- Tá bom, Bebeto. Assim tudo bem.

Jogaram a moedinha brilhante, brilhante que rodopiou três vezes e caiu no Um. Tininha perguntou:

- Daí gurizes? Quem ganhou?
Xiiii... Senti algum esquecimento no ar. Ai, ai rapazinhos: faltou escolher os lados. O beijo ficou sem dono!
Tininha agarrou a moeda sem dó. Correu e pediu para a profe comprar um chocolate bem grande.

Descrição de espaço para...

A sala de 30 metros quadrados tem espelhos e barras horizontais em todas as paredes. O chão é especial, um tablado em Imbuia com tecnologia para absorção de impactos. Nos espelhos, estão estrategicamente dispostas fotografias emolduradas da década de 70. Uma mesma bailarina figura em todas: em espetáculos, camarins, em aula ou simplesmente fazendo pose. Espanta a magreza doentia da bailarina. Sobre o aparelho de som, logo abaixo da janela que dá para um pequeno pátio, destaca-se uma outra fotografia. Parece ser a mesma bailarina só que em trajes comuns. Ainda magérrima, fica evidente a barriga enorme, apontando o final de uma gestação. Sorri muito na foto. Há uma espécie de bengala de madeira escorada em um dos cantos. Atrás da porta, estão penduradas sapatilhas bem pequeninas, de uma criança. Abaixo das sapatilhas, uma placa cor de rosa enfeitada diz: mãe e filha dançam aqui.


O apartamento é antigo, fica no segundo andar de um prédio no centro da cidade, perto da universidade. Duas janelas grandes permitem que a luz entre durante toda a manhã. É grande a sala de estar, onde um sofá e duas poltronas amarelas combinam com o piso de madeira e fazem companhia a mesa de centro.
A sala é bagunçada, há folhas de papel brancas pelos móveis, mesas e sofá. A mesinha da sala de estar abriga alguns potes com água. No canto esquerdo da porta de entrada, há uma estante com livros, um aparelho para tocar música e alguns cds de blues.
A cozinha é o espaço menos bagunçado do apartamento. Sobre a mesa da cozinha, uma fruteira com frutas de cera enfeita o ambiente. Algumas canecas de café sobre a geladeira dividem o espaço com o velho pingüim de cerâmica.
O quarto é o mais bagunçado, a cama está por fazer e os lençóis são velhos e surrados. Os girassóis estampados nas fronhas estão quase desaparecendo.
Em frente à janela grande do quarto, fica a mesa, livros, cadernos, pedaços de papeis jogados, todas as coisas misturadas. Folhas brancas vazias estão em toda parte. Há uma luminária verde com haste de metal dourado sobre a ponta esquerda da mesa.
Ao lado da cama o criado mudo guarda um Buda, com um livro: A vida de Buda. O quadro de Van Gogh está no chão, encostado na parede.

domingo, 18 de maio de 2008

Criar um espaço para...

A porta é de madeira e tem um sininho de vento pregado no quadrante superior. Ao girar-se o trinco de aço escovado, as varetinhas de metal do tal sino chocam-se umas contra as outras e provocam estalidos irritantes. A pequena sala é branca, com móveis brancos, só uma luzinha indireta azulada descompõe o ambiente quase hospitalar. Há uma cama, um divã, talvez seja uma maca, no canto direito de quem entra, perto de uma parede onde um quadro com miudinhos caracteres japoneses faz a gente se questionar: “Será chinês?”. A mesinha de apoio, ao pé da maca-cama-divã, quase desaparece sob uma cesta de palha trançada recheada de óleos aromáticos, ceras em pasta, paninhos úmidos, papel-toalha. O som relaxante é ambiente. Um aroma de patchoulli desprende-se de um incenso em forma de espiral que pende do teto. Um biombo esquisito, não se sabe se de bambu ou vime, equilibra-se do lado esquerdo da sala. Atrás dele, há um cabide com um roupão felpudo. Ao sair, o sininho de vento da porta solta tilintares zen.

16 CONDIÇÕES PROFISSIONAIS OU PESSOAIS LIGADAS A:

1- Uma cantora de ópera
2- Um pintor fracassado
3- Um tradutor de chinês
4- Uma dona de casa estressada
5- Um contorcionista contundido
6- Um palhaço
7- Um louco
8- Um diplomata
9- Um índio
10- Um mágico de circo
11- Um motorista
12- Um mendigo
13- Uma menina gordinha
14- Uma prostituta
15- Um freegan
16- Um garoto de programa

Exercício: Criar um espaço para a personagem.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

***

... e sai a ...
Castigando o chão, o sol racha-o até o horiz...
numa extensa linha de leste a oeste a imagem trêmula que engana a visão nos tons do terracota ondulantes até o limite. O inicio do cé...
sem manchas brancas, puro, numa intensa azul luminosidade é interrompida pela figura pret...
na planície como, esparramado no chão, se juntasse para o norte em uma espécie de tronco escuro, grosso, que vai apertando até o limiar deitado num circulo delgado. Partindo mais acima, dois galhos estendidos de oriente a ocidente vestidos até os punhos. E nas pontas, cinco retas desesperadas. E no extremo norte adornado, apontando ao céu, de súbito a fruta abre a boc...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Conto criado a partir da caixa de fósforos de Marinella

Fósforos de cor azul maia e palito tão fino que dá medo de usar


Fósforos de cor azul maia e palito tão fino que dá medo de usar. Azul fusão entre o índigo e a paligorsquita: o menino disse. Eu, eu não sei o que é. Fósforos da cor mais bela que eu já vi: azul maia de Chichén Itzá. Cor sagrada maia. Fósforos, quem sabe, sagrados também. 23 fósforos escondidos em uma caixinha pequenina que não lhes faz justiça, com as cores banais da bandeira colombiana e a frase “Cerillas de Colombia”. Caixinha bonitinha. Com, na outra face, uma coruja de olhos amarelos exorbitantes sobre fundo preto. Comprada em Tuluá.

Paligorsquita, o menino repetiu. Três vezes: Pa-li-gors-quita. Qui-ta. Usté no entiende? Vu né comprené pá? O menino não se desesperou, quis fazer-se entender. Só não falava português. Mas quando soube que éramos de São Paulo falou de uma assentada os nomes e sobrenomes de todos os presidentes do Brasil. Crianças pobres espertas da América do Sul. A coruja, ele disse, esticando o braço, aproximando-a do meu nariz, era um deus maia. Isso eu não sei se acreditar. Difícil acreditar nessas crianças. Mas o azul maia. Esse índigo com paliguinquita, que mesmo que fosse combustível eu não queimaria. Não sou religiosa. Mas aquela criança, aqueles olhos.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Happy Hour Criativo

Gente querida,

Durante o intervalo de ontem, surgiu a idéia de nos reunirmos em um barzinho depois da nossa próxima aula. O que vocês acham? Eu sugiro o Natalício, um boteco bem legal que fica quase em frente ao Senac. Podemos nos organizar em caronas, cacundas, bus, táxis, passeata rsrsrs... É bem fácil de chegar. Tenho certeza que iremos nos divertir!

Um beijo,

Juliana (a que senta ao fundo, ao lado do Mauro e de costas para o Cícero)

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Droga, a pilha sempre termina quando mais se precisa. Balançou a lanterna, deu tapinhas, murros, jogou-a contra a parede. Acertou algo de vidro, um vaso? Ele nada enxergava. Lembrou-se do isqueiro. Acendeu. A trêmula chama iluminou menos do que gostaria. Não ousou esbravejar, vá que a luz se ofendesse e se apagasse em revide. E agora, como achar uma chave no meio dessa bagunça? Lembro bem: ela disse que estava na gaveta da escrivaninha. Seria aquela mesa afogada em livros?

Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Mas pra que outro Cervantes, afinal? Essa coisa de colecionar traduções já estava virando uma obsessão. Sentada numa mesinha de canto da livraria, aguardava. Ele estava demorando. Era quase uma redundância: ele sempre demorava. Puxou um cigarro, cadê o isqueiro? Aquele larápio. Vai ver que até o isqueiro me roubou. Mas agora ele ia ter troco. Troco não, que não daria mais um tostão ao vagabundo. Se ele estava achando que ela amoleceria, estava muito enganado. Teria o que merecia. Ah, se teria. O cão revelou-se indigno de sua raça.

Inacreditável como uma mulher pode juntar tanta inutilidade. Pra quê dois cortadores de papel iguais? A Caterine sempre foi compulsiva. Compulsiva e ladra. Ladra não, coitada, cleptomaníaca. Não resiste, vai lá e pega. Pega e depois não lembra que pegou e diz que é dela. Aí, quando a gente pede de volta, faz aquela cara de espanto: de volta o quêêêê? Como se estivéssemos loucos. Ai, ai, merda! Odeio mesinhas de apoio. Essa doeu. Ele mancou até a poltrona, sentou na guarda, levantou a calça e tentou dar uma olhada na canela sem sucesso. Suspirou. Porra, vai ser impossível encontrar a chave assim no breu. Ela que me desculpe, vai ter que pedir outra prova de amor. Desisto. Ouviu um ranger de madeira. Suas pupilas dilataram. Caterine garantiu que não haveria ninguém em casa. “Quem está aí?”.

Acabaram a noite sem muitas surpresas, Caterine e seu cigarro apagado. Era óbvio que ele não viria, que burra. Como é que ela caía no conto da “última chance”? Quantas últimas chances havia concedido? Centenas. Centenas de milhares. Mas aí sempre a última virava penúltima e ela abria as pernas mais uma vez. Quisera ter a metade da lábia do desgraçado. Se pelo menos ele não tivesse aqueles enormes olhos inocentes. Era isso. Da próxima vez, evitaria os olhos nada inocentes dele. Pronto, Caterine, aí está você predisposta a uma próxima vez. Ah, meu Deus, não sei mais o que fazer. Por que não consigo botar um ponto final? Por quê?

Ele vinha subindo a rua bem quando ela saía encolhida de frio. Ele mancava, ela tremia. Por um instante, não sentiram dor: viram-se. Um calor invadiu o corpo dela, ele correu ao seu encontro. Abraçaram-se. Beijaram-se. Ela derreteu. Ele gemeu. Estava todo lanhado. “O que houve? Jesus Cristo, olha pra você, está sangrando!”, Caterine apavorou-se. Ele mirou-lhe com duas gigantescas bolitas azuis, dessa vez implorando por inocência: “Acho que matei um homem”.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. Sentado com o controle remoto na mão, não acertava os canais, mas aumentava o volume. Havia retirado o cortador de papel do peito, sabia que não havia nada a fazer. Sabia que não tinha mais muito tempo. A chave do cofre estava a salvo na sua mão. Conseguira evitar o escândalo. Só Deus sabe o que aconteceria se aqueles papéis caíssem nas garras da oposição. Ou da filha xiita do patrão. Eram documentos que valiam ouro. Valeram a sua vida. Talvez o excelentíssimo senhor representante do povo não se importasse com a poça de sangue no seu sofá predileto. Talvez... O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Logorrali ou Tragédia em quadrinhos (tipo B)

CENA 1 (A casa)
Era noite quando o ladrão chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Um casal de Velhos assistia televisão. Antes que ele pudesse largar a lanterna e usar o pé-de-cabra, as Erínias, em forma de moscas, invadiram três buracos de sua cabeça. Estamos, disse uma das Benevolentes, próximas do nosso intento. E voaram para dentro da casa, matando o casal de Velhos.

CENA 2 (A visita)
O Escritor caminhava com seu chiuaua. Cedo tivera uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Em frente à vitrine da livraria, O Escritor interrompeu o assobio, uma série de corpos se debatiam dentro da loja, no meio da horda, identificou três mulheres seminuas. O Escritor correu, gritando o nome Orestes. Ao tentar atravessar a rua, foi atropelado. Seu fiel amigo latiu para o carro. Uma das três mulheres, olhando o chiuaua, perguntou se matariam cães. O cão revelou-se indigno de sua raça, respondeu a outra.

CENA 3 (A Peripécia)
As Erínias agiram. Desprendiam-se da Antiguidade e viam buscar o que lhes era de direito. Acabaram a noite sem muitas surpresas: parte da população da Terra recebera funesta visita.

CENA 4 (A casa)
A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas (não as Erínias, mas aquelas que aparecem dos corpos em decomposição) os funerais da Princesa, morta um dia antes, suicídio. Tinha é culpa no cartório, sentenciou o Âncora do jornal da tarde, morrendo ao vivo para alguns Telespectadores.

CENA 5 (Declaração Universal dos Direitos Humanos)
Depois de sete dias de Terror, o governador, grande Zeus, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração: a dos deuses do Olimpo. Não foi dessa vez a Paz Mundial, disse Ares, batendo na cabeça de um Homem.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Logorrali

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Suspiro de admiração, puro deleite. Amélia, bela mulher, sorria em admirá-la. Melhor noite de sua vida. A luz da lanterna, por certo, não atrapalharia o sono da amada . Não podia evitar cobri-la de mimos, trouxe-lhe, desta vez, um Cervantes. Notara quando Amélia folheou-o na livraria, como a uma relíquia. Parecia não conseguir devolvê-lo à estante.
Amélia, fingindo dormir, deixou que ele, silencioso, largasse o pacote no lado esquerdo da cama. Na manhã anterior, quando passeavam pelos cafés e livrarias, cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Harold era observador. Fez bem em devolver o James Joyce. Quem sabe não se depararia com Don Quixote na manhã seguinte? Ah, adorável Harold, que homem previsível.
Abriu os olhos e viu o pacote. Precipitou-se em pegá-lo. Harold a espionava atrás da cortina.
-Cervantes! Exclamou às gargalhadas. – Ah, adorável Harold que homem... O cachorro adentra latindo de forma descontrolada, denuncia o esconderijo de Harold. O cão revelou-se indigno de sua raça.
Harold fica sem graça.
- Cão inoportuno. Queria apenas te olhar dormindo antes de ir embora.
Amélia sorri e lhe estende os braços.
- Assim me deixas mal acostumada. Cervantes, como adivinhaste?
Ele vai até ela, lhe dá um beijo demorado e pede que o espere bem cheirosa, pois à noite voltará. Despede-se e vai.
Amélia rola na cama, prosseguem as gargalhadas. Fica de bruços a estudar as novas artimanhas que utilizaria nesta noite: “ele não escaparia”.

Jantar à luz de velas, vinho tinto, cabernet sauvignon, música romântica, carícias, acabaram a noite sem muitas surpresas. Harold passaria o final de semana com ela, no apartamento. Era sábado e sua esposa estava viajando.
Pediram comida chinesa, comeram na sala e assistiram TV ao acaso. Foram de novo pra cama, levando as taças de vinho. Preguiças de uma tarde morna, janelas cerradas, refúgio de amantes.
O telefone toca e Amélia pede um tempinho, vai atendê-lo na sacada. Num impulso, Harold pega a extensão. “Sim, ele ainda está comigo, no apartamento.”; “claro, conforme havíamos combinado, Cristina, esta tarde ele já estará morto”. Harold sente fisgar as costas. A outra voz é conhecida: Cristina, sua esposa. “Tudo, tudinho. Como você falou, até já ganhei o Cervantes.” “Sim, coloquei no vinho”. A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. “Quero o depósito hoje”. Harold sente a garganta queimar. “É questão de horas, talvez minutos”. E fica com a visão turva. A TV prossegue noticiando coisas inúteis: o governador nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração. A ligação termina. Amélia retorna sorrindo.

domingo, 27 de abril de 2008

Logo-Rallye

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Lamentou não ter comprado o livro que ela pedira de presente. Bem que tentou.
“Compra não autorizada. O senhor quer que eu passe de novo?”
Não adiantava se lamenta. Ela ficaria uma arara, independente da explicação. Colou a orelha na porta, tentando escutar o se passava.
No interior do quarto, Dona Branca, resmungava de um lado pro outro. O cachorro deitado observava a dona como se entendesse o discurso. “Toc-toc”. A porta abre. Coronel Mostarda de mãos abanando. Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.
- Feliz aniversário! Querida, tentei comprar o livro que pediu, mas o cartão não passou. Fez alguma compra com o cartão? – disse o velho Mostarda.
- Nem no meu aniversário. Que absurdo. – disse Dona Branca. – Imprestável. Deve gastar todo dinheiro da nossa aposentadoria com piranhas.
- Não, amor. Deve ter sido um engano da operadora.
- Nosso casamento foi um engano. Rex, Pega. Pega, Rex.
Bem acomodado o cão revelou-se indigno de sua raça. Dona Branca correu Mostarda e cão a bofetões. Bateu a porta. A dupla acomodou-se no sofá. O televisão mostrava as notícias do mundo. Acabaram a noite sem muitas supressas.
No quarto, Dona Branca não achava posição para dormir. Volta e meia resmungava. Quando o relógio da penteadeira marcou quatro horas, levantou. Foi pé por pé até a sala. Coronel Mostarda e o cão dormiam. Dona branca pegou o castiçal. Com um golpe certeiro, atingiu o velho. O cão acordou. Latiu. Voltou para cama às pressas. O pastor a seguiu até a porta do quarto. Ali deitou. A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava.
Ao acordar, Dona Branca ligou para a polícia. Dizia que provavelmente um assaltante houvesse matado o velho Coronel. Os policiais também estavam certos disso. Até o pastor alemão os levar até o quarto da mulher, revelando, embaixo da cama, o castiçal manchado de sangue. O governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração. Reconhecendo os bons serviços do velho cão. Dona branca está em liberdade. Os advogados conseguiram provar que foi um ato de sonambulismo.

***

Tudo escuro, pra variar. Estes filmes são mesmo assim. Pegou a lanterna do carro, atravessou o portão, passou a mão nas rosas e feriu-se com um espinho. Chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Deve ter faltado luz em toda a cidade. Examinou o livro com a lanterna, pois não queria manchá-lo com sangue - claro. De manhã, atrás da porta da sala, ouviu-a dizer que cedo tivera uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. O cachorro sentiu a sua presença e correu ao seu encontro no escuro. No clarão do raio ele o viu correr em sua direção, (que susto), era pra ser. O Pastor Alemão, ansioso na fuga derrubou-lhe o livro e a pasta. O cão revelou-se indigno de sua raça.

Na casa, com uma vela acesa na mão, sua mulher desceu a escada. A luz voltou e eles se encontraram. Abraçam-se. Pra mim eles acabaram a noite sem muitas surpresas.

Mudo de canal, cansei desse filme. Levanto da poltrona, deixando a TV ligada – tinha certeza de que ali, naquela sala deserta, escura e chata, a TV, transmitiria para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agoniza naquele quarto com cheiro a mofo. Subo as escadas, para ver meu pai, eu sei, pela última vez. Do lado de fora do quarto, minha mãe fala com meu tio de política – nunca gostei dele. Entro direto no quarto passando pelos dois e só consigo ouvir a noticia de que o governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração o algo parecido - ele sempre sonhou em receber uma. A TV do quarto, ligada, transmite o mesmo funeral. E lá está ele, tentando respirar fundo. Pele e osso.

Amanhã, quando o quarto estiver vazio, vou abrir estas janelas. Talvez o cheiro a mofo passe.

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Não havia nada. Agora dera para ouvir coisas. Na certa estava ficando caduco. Mas a voz era tão clara, a voz era insistente e sussurrava Seu José, Seu José.

A luz achou somente um sapo, gordo, o papo pulsante. Deu outro suspiro e preparou-se para entrar em casa.

Seu José, Seu José: ele virou a cabeça. Era Marta. Soube mesmo com a lanterna desligada. Era Marta que chamara contida, pensando nos vizinhos, adivinhando errado Seu José no quarto.

Ela entrou. Vestia seu casaquinho de lã amarelo e trazia na mão um livro, mão pequenina que tinha, “El coronel no tiene quien le escriba”. Disse que cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Então comprou García Márquez.

Viera lendo no ônibus, e já tinha trechos favoritos, como mira en lo que ha quedado nuestro paraguas de payaso de circo, ahora sólo sirve para contar las estrellas, etc., os quais leu em voz alta, como José fosse mil.

Ele a ouvia com olhinhos de cão sexagenário. Queria mordê-la, arrancar-lhe a carne e roer-lhe os ossos. Não o fez. O cão revelou-se indigno de sua raça, apesar do frio, apesar de sabe, Seu José, quando eu venho aqui eu não tenho vontade de voltar pra casa.

Mas Marta voltou, porque voltar custava só uma quadra ou duas, e a mãe esperava-a roncando. Acabaram a noite sem muitas surpresas.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava, a mãozinha de Marta traçando no ar formas impossíveis, enquanto a outra segurava o livro.

Dormiu de tédio, durante o noticiário, e sonhou que o Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração para as pessoas de mãos pequenas e casacos amarelos.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Logo-rallye


"O homem dissipa a sua angústia inventando ou adaptando desgraças imaginárias" Raymond Queneau

Joana acordou num susto. Barulhos no andar de baixo da casa. Acorda João. Tem alguém lá embaixo. Ela sempre faz isso. Ele levanta e nunca acha nada. Ele fica puto e volta a dormir. Ela foi dessa vez. Ela chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Era seu filho, outra vez chegando bêbado na madrugada. O filho vê a mãe e começa a se desculpar – foi o cachorro quente mãe – enquanto Joana o ajuda até o banheiro. Esperou até o menino terminar o banho. Como podia ter tido filhos tão diferentes. A filha, aluna brilhante. O filho, boêmio completo. Ao sair do banheiro, Joana disse ao filho que conversariam na manhã seguinte. Ficou sem sono.

Ligou a TV. No canal de compras era anunciado: queima de James Joyce. Sentiu um arrepio. Era só uma liquidação. Bizarro. Era o que a filha havia pedido mesmo? Talvez fosse o tal de Cervantes. O João era unha de fome. Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Assim decidiu deixar de lado. Ao ir para cama, encontrou com seu micro poodle pelo corredor. Estranho. Deveria estar dormindo.

No quarto o travesseiro estava todo molhado. Ficou furiosa. O cão revelou-se indigno de sua raça. Acordou toda a casa gritando com o cão. Xingou, esbravejou. Quando ligaram a luz, percebeu que era apenas uma mancha que a luz da janela entreaberta havia refletido em seu travesseiro. Onde ando com a cabeça, pensou. As crianças vieram lhe consolar, o marido também. Precisava de férias mesmo. No final, acabaram a noite sem muitas surpresas.

Na manhã seguinte, ao chegar do supermercado, Joana se deparou com o filho de cor péssima, aspecto horroroso. A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. A princesa Daiana havia morrido num acidente de carro trágico. Mas quem se aproveitava no mal estar do menino, era a criação das moscas do açougue ao lado da casa.

Durante o almoço, João falava de assuntos supérfluos, como sempre. Joana ficava pensando em seus assuntos supérfluos. As crianças assistiam TV. Todos faziam de conta que estavam prestando atenção, uns aos outros. Até que João terminou sua história:
- O governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.
- O que você quer dizer com isso? Disse Joana, voltando de sua viagem imaginária a Cancun.
- Isso quer dizer que serei condecorado. Falou com mais orgulho do que deveria.
A condecoração era o resultado de não haver faltado nenhum dia, durante os 25 anos que prestava serviços para um Departamento do Governo Estadual que estava sob investigação de alguma CPI. Além da medalha, da inveja do outros, ficava no dever de não poder faltar novamente.

LOGORRALI - 24/04/2008

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Nunca conseguiria chegar a tempo de salvá-la. Por mais que corresse, o relógio seria mais rápido. A livraria estava para fechar, e antes que ela saísse, não haveria nada que os seguranças pudessem fazer. A bomba destruiria tudo: livros, seguranças, paparazzo, realeza. Ninguém saberia onde a bomba foi instalada, o bilhete só informava sobe o poder destrutivo do artefato, um quarteirão indo pelos ares. Ela estava agora na livraria, escolhendo um presente para ele mesmo, de quem ela nem desconfiava ser mais do que um inocente estudante. Ele buscou a maleta, as armas, saiu do porão, colocou a coleira no cachorro e saíram os dois, correndo.
Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.
Se desse este livro como presente, saberia o que ele diria: uma princesa, ainda que tenha este título tão romântico, deveria ser mais atuante politicamente, não se preocupar com divagações filosóficas e futilidades poéticas, buscar autores relevantes para a sociedade e a economia, a democracia e o povo, ah, o povo oprimido e sofredor. Não, Joyce não. Definitivamente, Marx.
O cão revelou-se indigno de sua raça. Na segunda quadra, estava arfante, suado, com a língua de fora, e certamente, não conseguiria chegar a tempo. Se chegasse, não conseguiria farejar a bomba. Maldição. O tempo passando, o relógio da bomba em contagem regressiva. Pensava nela, tomado de amor, contrariando suas crenças. Nunca confiar na realeza. Não misturar trabalho e sentimentos pessoais. Continuou correndo, mas estava perdendo as forças e as esperanças. Não precisou consultar o relógio: a explosão o avisou que eram cinco da tarde.
Acabaram a noite sem muitas surpresas.
Sirenes, luzes, câmeras, bombeiros, corpos mutilados e fumaça, muita fumaça. Pessoas desgrenhadas, pedaços de vidro, de livros, de paredes destruídas. Cenário de destruição, atentado a bomba, como aparece volta e meia no noticiário. Em algum lugar, uma corrente com o escudo da realeza, e um pedaço de uma capa de Ulisses.
A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava.
O sangue estava na sala, no chão, nos tapetes, saindo de seus braços, pulsos abertos a navalha. Lembrava de momentos, cenas e sorrisos. Dor no peito, dor no coração, não pensar, não sentir. Cada vez mais nítida, oh, graças, ela.
O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.
Era o brasão do Livro Dourado, premiando os heróis da segurança nacional, em homenagem ao agente que nos últimos três anos, deixou de lado a identidade e vida pessoal para proteger a princesa, e que preferiu a morte por não suportar a idéia de conviver com uma missão não cumprida a contento. Ninguém soube da história verdadeira: a idéia que ele não poderia suportar era a de estar no mundo sem ela. Simplesmente, era melhor enamorado do que agente.
Exercício: Juntar as frases em único texto.


(1) Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Moveu-se lentamente. Não queria que Flávia o visse chegando àquela hora da madrugada.
Uma voz embargada chamou sua atenção. Focou, de repente, a lanterna na direção. Viu-a deitada no sofá, assistindo televisão. Ela voltou-se para ele e contou, direto, sem rodeios que (2) Cedo tivera uma intuição: se comprasse o James Joyce jamais ganharia o Cervantes. Ele achou graça no senso de humor da namorada. Pelo menos não estava empunhando nenhuma adaga e espreitando no escuro da sala.
Isso até fez com que ele ficasse envergonhado. Já não era a primeira vez, nem a segunda, que fazia aquele papelão diante de Flávia. Sentia-se um cão, o (3) cão que se revelou indigno de sua raça. Desligou a lanterna e aproximou-se, com calma, sentindo até onde poderia ir, até onde poderia estar com ela diante das circunstâncias. Ele mal pode acreditar que (4) acabaram a noite sem muitas surpresas: (5) a TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. A culpa decidiu atormentá-lo. Teria sido muito melhor se ela houvesse esbravejado, gritado, socado seu peito com toda a energia. Mas, não, ela apenas estava ali, deitada, dormindo, sem culpa. A sua culpa, ao contrário aumentava cada vez mais, ganhava espaço diante da pureza de Flávia. Aquela pureza que ninguém tem mais nos dias de hoje. Não merecia sua raça bandida. E, sim, uma condecoração por sua alma limpa. A premiação dos justos. Dos que dormem tranqüilos como Flávia dormia. Cogitou que (6) O Governador, nesse dia, baixara um decreto instituindo uma nova condecoração: Aos puros de espírito, não pecadores, não devedores, seria garantido o sono recompensador, sem sobressaltos, sem interrupções. Aos pecadores, como ele, a insônia seria a insígnia da culpa. Ao lado de Flávia passou sua noite clara, assistindo o funeral e condecorando-se.
Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Notadamente Karina não estava em casa, era um alivio nos últimos tempos em que a coisas não andavam bem, ela não estar em casa quando ele chegava. Naquele fim de tarde o temporal havia derrubado alguns postes de luz da rua e a lanterna guardada no porta luvas do carro servia para alguma coisa, idéia de Karina que gostava de se prevenir de tudo. A briga que haviam tido pela manhã era pelo mesmo motivo de sempre. O aniversário de casamento e os malditos presentes. Ela queria uma coisa e ele nunca sabia o que comprar, ela com a mania de lhe dar livros.
Karina sabia que aquele dia seria mais complicado do que os outros, a comemorativa dos sete anos de casamento era mais apreensiva do que o possível terremoto que atormentava os moradores do pais nos últimos dias.
Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.
Foi ao shopping na tentativa de encontrar algo que surpreendesse Humberto, queria mais que tudo que ele ficasse extremamente feliz com o presente, mas se fosse um livro, ou algo relacionado à arte, com certeza as coisas ficariam piores. Nos últimos meses as brigas tinham aumentado, Humberto queria um cão, por que desde criança ele nunca pôde ter um cão, a mãe não permitia animais em casa. E muito menos ela. Se não tinham filhos, por que teriam cães?
Pensou no Cervantes, a obra completa do autor estava em exposição na vitrine da livraria quando ela entrou para comprar o Joyce, mas sabia que se a surpresa fosse ruim, ele não compraria algo que lhe agradasse.
Olhando pela escada rolante, avistou a pet shop, e os animais que enjaulados em cabines de vidro latiam e pediam atenção de adultos e crianças. Talvez pudesse ceder, deixar de ser turrona. Comprou um cãozinho, um puggy, bonito até.Caríssimo, com certeza ele não pagaria aquele valor por nenhum presente para ela. Mas amar tem dessas coisas, deixar na loja de animais um mês de salário apenas para ver o marido sorrir.
O resultado foi bom, Humberto ficou feliz, parecia um menino que brincava pela primeira vez. Nestor foi o nome escolhido para o animalzinho. Depois de algumas horas as coisas ficaram ruins.O cão revelou-se indigno de sua raça.Chorou alto, sujou o tapete da sala e fez xixi no sofá. O jantar foi deixado de lado. Acabaram a noite sem muitas surpresas.
Depois de alguns xingamentos que Humberto nunca deixava de dizer quando brigavam: desalmada, cruel, fria entre tantos outros Karina foi dormir, deixando ele e o cão na sala. Um belo aniversário de casamento. Afinal sete é um número cabalístico não é? O número do caos e da ordem. Caos? Ordem? Ou Cão e desordem?
Humberto ficou ali no meio da sala, olhando para Nestor que cheirava o tapete, lambia as próprias patas e na inocência que lhe cabia olhava distraidamente a sala que ainda recendia ao cheiro das velas que ele acendeu quando chegou em casa, a luz da lanterna não era suficiente para ele enxergar a comida que tinha que preparar. Era a vez dele de cozinhar o jantar de aniversário.
A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava, suas idéias de felicidade foram morrendo esses anos todos pensou. Como a princesa que foi morrendo aos poucos, com a doença lhe tirando os melhores anos da vida.
Nestor quebrou o silêncio com um rosnado para o nada, foi então que ouviu a noticia na TV, o Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração: um certo casal de velhinhos havia sido condecorados por dedicarem sua vida toda a cuidar de animais de rua. Definitivamente Karina precisava ouvir essa noticia. Mas não quis chamá-la. Ela estava feliz demais com seus livros novos.


Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Não queria ter a mesma visão de sempre. Estava cansado de todo aquele vazio, de todas aquelas sombras que faziam da casa a sua própria extensão. Nesses dias de clareza profunda e dolorida, Paulo costumava passar na livraria Colóquio. Um pouco de fantasia não retalharia ainda mais a sua realidade. E só uma coisa o consolava e não era, contudo, a livraria. A solidão só era menos bruta pela companhia de Cervantes, o cão dado de presente pela mãe. Desde cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. E a mãe estava certa. Letrados são fiéis à dor, invejosos da própria piedade. Por conta disso, ela desistira dos livros e de todo e qualquer traço intelectual- só não deslembrara a ironia.

A mãe de Paulo preferia os cães. Todos os seus cães sempre foram Cervantes. Assim como agora se chamava o cão de Paulo. Uma herança vertical de dinastia canina. Mas até ele, o décimo segundo cão Cervantes, parecia obscuro sob aquele teto sem chão. Sentiria a morte o cão também? Haveria tempo para um próximo Cervantes? O cão revelou-se indigno de sua raça. E de todas as expectativas que lhe foram impostas. Era um dos espectros sem cor que transfiguravam a cena; como Paulo, o pobre coitado empunhando lanterna em rompante de lucidez.

Sentou-se na poltrona abóbora, quase marrom de tanto pó, tanto pêlo, tanto medo. Cervantes aos pés de Paulo era figura de consolo entre os poucos trapos de vida que o infeliz se permitia carregar. Acabaram a noite sem muitas surpresas. Um velando ao outro e à própria solidão compartilhada. Um ato de solidariedade às imagens que os assistiam.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. Sim, o governador era um insensível, não havia dúvidas. Não importava a tristeza de Paulo, a impotência de Cervantes e nem a morte da doce princesa. Nem a audiência das moscas constrangia o governante. As imagens denunciaram toda a agonia pueril de quem sempre conhece o desfecho exato do amanhã. O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração. Luto se respeita, é o que dizem os ortodoxos. Menos mal que Paulo e Cervantes dormiram a manhã inteira e o novo decreto lhes passou despercebido.

E as moscas? As moscas estavam longe, a varejar outros resquícios de final de ilusão. Algum outro Dom Quixote haveria de existir naquele Reino.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Logorrali de frases

Bom, eu me animo com o resultado do exercício maluco proposto pelos senhores Assis/Queneau...


“Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro”. Não ia começar desse jeito porque nem sabia quem era “ele”. Mas seria alguém que gostasse de literatura. Fosse "ele" ou "ela". Então. Primeira frase: “Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.” Mas que besteira. O Cervantes, quando ele nem escrevia em espanhol. Não que não pudesse merecer esse prêmio algum dia. Porque, a fim de contas, ele não era como aquele colega da Academia. O cão revelou-se indigno de sua raça, acabou escrevendo comerciais de iogurte. Ainda sem começo, recorreu ao jornal. Leu um pé de foto: “Acabaram a noite sem muitas surpresas”. Quem era que escrevia os pés de foto dos jornais? E quem se importava com a noite daquele casal da foto? A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa. Ele, entretanto, apenas agonizava sobre o teclado do computador. Podia se inspirar nessa morte que transtornara o país, que o virara de cabeça para baixo. De certo tal romance ia virar um best-seller. Foi para a cama dando voltas a essa idéia. E, no dia seguinte, a segurou. Porque o Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração para quem melhor louvasse a bela e jovem princesa morta.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Primeiro passo

Colegas,

Como combinamos esse será nosso espaço para postarmos os textos produzidos na Oficina.
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