domingo, 27 de abril de 2008

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Não havia nada. Agora dera para ouvir coisas. Na certa estava ficando caduco. Mas a voz era tão clara, a voz era insistente e sussurrava Seu José, Seu José.

A luz achou somente um sapo, gordo, o papo pulsante. Deu outro suspiro e preparou-se para entrar em casa.

Seu José, Seu José: ele virou a cabeça. Era Marta. Soube mesmo com a lanterna desligada. Era Marta que chamara contida, pensando nos vizinhos, adivinhando errado Seu José no quarto.

Ela entrou. Vestia seu casaquinho de lã amarelo e trazia na mão um livro, mão pequenina que tinha, “El coronel no tiene quien le escriba”. Disse que cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Então comprou García Márquez.

Viera lendo no ônibus, e já tinha trechos favoritos, como mira en lo que ha quedado nuestro paraguas de payaso de circo, ahora sólo sirve para contar las estrellas, etc., os quais leu em voz alta, como José fosse mil.

Ele a ouvia com olhinhos de cão sexagenário. Queria mordê-la, arrancar-lhe a carne e roer-lhe os ossos. Não o fez. O cão revelou-se indigno de sua raça, apesar do frio, apesar de sabe, Seu José, quando eu venho aqui eu não tenho vontade de voltar pra casa.

Mas Marta voltou, porque voltar custava só uma quadra ou duas, e a mãe esperava-a roncando. Acabaram a noite sem muitas surpresas.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava, a mãozinha de Marta traçando no ar formas impossíveis, enquanto a outra segurava o livro.

Dormiu de tédio, durante o noticiário, e sonhou que o Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração para as pessoas de mãos pequenas e casacos amarelos.

Um comentário:

aline daka disse...

Que lindo esse... que bom que fiz essa visitinha... bjos!