quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Paráfrase de Roda Viva (Chico Buarque, 1967)

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração


Quarenta anos depois
gira a moderna roda viva.

Estanque no cruzamento próximo ao escritório, Amanda fala ao celular com a empregada doméstica e aguarda o sinal abrir. Carros para cá, outros para lá.
O mundo cresceu de repente após o nascimento do filho Augusto. A rotina tornou-se uma roda-viva e carrega o destino com ela. Amanda não tem mais voz ativa e tem dias em que se sente como quem partiu ou morreu.
O sinal abriu. Ninguém andou. Carros parados de lá, carros atravessados aqui e ali. O tempo rodou naquele instante, nas voltas do coração de Amanda, cansado, na súplica ao pião para que rode as horas rápidas até a noite.
No escritório, os prazos a esperam —, nadar contra a corrente até não poder resistir é a solução — sentindo, ao final da manhã, o quanto deixou de cumprir. O tempo rodou naquele instante: o cliente adentra o barco navegante do dia de Amanda. Analisa com olhos críticos aquilo que havia sido feito. Para ela, a mais linda roseira que há. O cliente apenas enxerga os espinhos e insiste para que tudo se inicie outra vez. Amanda quer rodar o mundo e estar às voltas com o seu coração.
Almoço em casa com o filho e o marido, mas a mulata não quer mais rodar. Sequer adianta a serenata de Amanda ao pé do ouvido da empregada. Aquela roda de samba acabou. Amanda chora no banheiro, bem baixinho. A roda viva carrega a sua viola para lá e o tempo gira mais outra vez naquele instante.
No escritório, o moinho segue seu passo de roda-gigante. No supermercado as roseiras cultivadas por Amanda são arrancadas em um momento pelos números impiedosos da caixa registradora em troca dos poucos melões. Em casa, do marido, no peito, a saudade cativa. Tanto que faz força para o tempo parar. Não consegue e rende-se mais uma vez à roda viva, que carrega a saudade para lá. É hora de preparar o próximo dia. É hora de corrigir o menino. É hora de procurar outra mulata, ou uma alemã que lhe sirva.
A roda-gigante gira em câmera lenta. Amanda faz um samba, torra a sua roseira e aposenta a viola do seu coração. A fogueira de Amanda queima a roda viva em um instante sem pensamento.

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