sexta-feira, 25 de abril de 2008

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Não queria ter a mesma visão de sempre. Estava cansado de todo aquele vazio, de todas aquelas sombras que faziam da casa a sua própria extensão. Nesses dias de clareza profunda e dolorida, Paulo costumava passar na livraria Colóquio. Um pouco de fantasia não retalharia ainda mais a sua realidade. E só uma coisa o consolava e não era, contudo, a livraria. A solidão só era menos bruta pela companhia de Cervantes, o cão dado de presente pela mãe. Desde cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. E a mãe estava certa. Letrados são fiéis à dor, invejosos da própria piedade. Por conta disso, ela desistira dos livros e de todo e qualquer traço intelectual- só não deslembrara a ironia.

A mãe de Paulo preferia os cães. Todos os seus cães sempre foram Cervantes. Assim como agora se chamava o cão de Paulo. Uma herança vertical de dinastia canina. Mas até ele, o décimo segundo cão Cervantes, parecia obscuro sob aquele teto sem chão. Sentiria a morte o cão também? Haveria tempo para um próximo Cervantes? O cão revelou-se indigno de sua raça. E de todas as expectativas que lhe foram impostas. Era um dos espectros sem cor que transfiguravam a cena; como Paulo, o pobre coitado empunhando lanterna em rompante de lucidez.

Sentou-se na poltrona abóbora, quase marrom de tanto pó, tanto pêlo, tanto medo. Cervantes aos pés de Paulo era figura de consolo entre os poucos trapos de vida que o infeliz se permitia carregar. Acabaram a noite sem muitas surpresas. Um velando ao outro e à própria solidão compartilhada. Um ato de solidariedade às imagens que os assistiam.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. Sim, o governador era um insensível, não havia dúvidas. Não importava a tristeza de Paulo, a impotência de Cervantes e nem a morte da doce princesa. Nem a audiência das moscas constrangia o governante. As imagens denunciaram toda a agonia pueril de quem sempre conhece o desfecho exato do amanhã. O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração. Luto se respeita, é o que dizem os ortodoxos. Menos mal que Paulo e Cervantes dormiram a manhã inteira e o novo decreto lhes passou despercebido.

E as moscas? As moscas estavam longe, a varejar outros resquícios de final de ilusão. Algum outro Dom Quixote haveria de existir naquele Reino.

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