quinta-feira, 8 de maio de 2008

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Droga, a pilha sempre termina quando mais se precisa. Balançou a lanterna, deu tapinhas, murros, jogou-a contra a parede. Acertou algo de vidro, um vaso? Ele nada enxergava. Lembrou-se do isqueiro. Acendeu. A trêmula chama iluminou menos do que gostaria. Não ousou esbravejar, vá que a luz se ofendesse e se apagasse em revide. E agora, como achar uma chave no meio dessa bagunça? Lembro bem: ela disse que estava na gaveta da escrivaninha. Seria aquela mesa afogada em livros?

Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Mas pra que outro Cervantes, afinal? Essa coisa de colecionar traduções já estava virando uma obsessão. Sentada numa mesinha de canto da livraria, aguardava. Ele estava demorando. Era quase uma redundância: ele sempre demorava. Puxou um cigarro, cadê o isqueiro? Aquele larápio. Vai ver que até o isqueiro me roubou. Mas agora ele ia ter troco. Troco não, que não daria mais um tostão ao vagabundo. Se ele estava achando que ela amoleceria, estava muito enganado. Teria o que merecia. Ah, se teria. O cão revelou-se indigno de sua raça.

Inacreditável como uma mulher pode juntar tanta inutilidade. Pra quê dois cortadores de papel iguais? A Caterine sempre foi compulsiva. Compulsiva e ladra. Ladra não, coitada, cleptomaníaca. Não resiste, vai lá e pega. Pega e depois não lembra que pegou e diz que é dela. Aí, quando a gente pede de volta, faz aquela cara de espanto: de volta o quêêêê? Como se estivéssemos loucos. Ai, ai, merda! Odeio mesinhas de apoio. Essa doeu. Ele mancou até a poltrona, sentou na guarda, levantou a calça e tentou dar uma olhada na canela sem sucesso. Suspirou. Porra, vai ser impossível encontrar a chave assim no breu. Ela que me desculpe, vai ter que pedir outra prova de amor. Desisto. Ouviu um ranger de madeira. Suas pupilas dilataram. Caterine garantiu que não haveria ninguém em casa. “Quem está aí?”.

Acabaram a noite sem muitas surpresas, Caterine e seu cigarro apagado. Era óbvio que ele não viria, que burra. Como é que ela caía no conto da “última chance”? Quantas últimas chances havia concedido? Centenas. Centenas de milhares. Mas aí sempre a última virava penúltima e ela abria as pernas mais uma vez. Quisera ter a metade da lábia do desgraçado. Se pelo menos ele não tivesse aqueles enormes olhos inocentes. Era isso. Da próxima vez, evitaria os olhos nada inocentes dele. Pronto, Caterine, aí está você predisposta a uma próxima vez. Ah, meu Deus, não sei mais o que fazer. Por que não consigo botar um ponto final? Por quê?

Ele vinha subindo a rua bem quando ela saía encolhida de frio. Ele mancava, ela tremia. Por um instante, não sentiram dor: viram-se. Um calor invadiu o corpo dela, ele correu ao seu encontro. Abraçaram-se. Beijaram-se. Ela derreteu. Ele gemeu. Estava todo lanhado. “O que houve? Jesus Cristo, olha pra você, está sangrando!”, Caterine apavorou-se. Ele mirou-lhe com duas gigantescas bolitas azuis, dessa vez implorando por inocência: “Acho que matei um homem”.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. Sentado com o controle remoto na mão, não acertava os canais, mas aumentava o volume. Havia retirado o cortador de papel do peito, sabia que não havia nada a fazer. Sabia que não tinha mais muito tempo. A chave do cofre estava a salvo na sua mão. Conseguira evitar o escândalo. Só Deus sabe o que aconteceria se aqueles papéis caíssem nas garras da oposição. Ou da filha xiita do patrão. Eram documentos que valiam ouro. Valeram a sua vida. Talvez o excelentíssimo senhor representante do povo não se importasse com a poça de sangue no seu sofá predileto. Talvez... O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.

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