sexta-feira, 25 de abril de 2008

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"O homem dissipa a sua angústia inventando ou adaptando desgraças imaginárias" Raymond Queneau

Joana acordou num susto. Barulhos no andar de baixo da casa. Acorda João. Tem alguém lá embaixo. Ela sempre faz isso. Ele levanta e nunca acha nada. Ele fica puto e volta a dormir. Ela foi dessa vez. Ela chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Era seu filho, outra vez chegando bêbado na madrugada. O filho vê a mãe e começa a se desculpar – foi o cachorro quente mãe – enquanto Joana o ajuda até o banheiro. Esperou até o menino terminar o banho. Como podia ter tido filhos tão diferentes. A filha, aluna brilhante. O filho, boêmio completo. Ao sair do banheiro, Joana disse ao filho que conversariam na manhã seguinte. Ficou sem sono.

Ligou a TV. No canal de compras era anunciado: queima de James Joyce. Sentiu um arrepio. Era só uma liquidação. Bizarro. Era o que a filha havia pedido mesmo? Talvez fosse o tal de Cervantes. O João era unha de fome. Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Assim decidiu deixar de lado. Ao ir para cama, encontrou com seu micro poodle pelo corredor. Estranho. Deveria estar dormindo.

No quarto o travesseiro estava todo molhado. Ficou furiosa. O cão revelou-se indigno de sua raça. Acordou toda a casa gritando com o cão. Xingou, esbravejou. Quando ligaram a luz, percebeu que era apenas uma mancha que a luz da janela entreaberta havia refletido em seu travesseiro. Onde ando com a cabeça, pensou. As crianças vieram lhe consolar, o marido também. Precisava de férias mesmo. No final, acabaram a noite sem muitas surpresas.

Na manhã seguinte, ao chegar do supermercado, Joana se deparou com o filho de cor péssima, aspecto horroroso. A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. A princesa Daiana havia morrido num acidente de carro trágico. Mas quem se aproveitava no mal estar do menino, era a criação das moscas do açougue ao lado da casa.

Durante o almoço, João falava de assuntos supérfluos, como sempre. Joana ficava pensando em seus assuntos supérfluos. As crianças assistiam TV. Todos faziam de conta que estavam prestando atenção, uns aos outros. Até que João terminou sua história:
- O governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.
- O que você quer dizer com isso? Disse Joana, voltando de sua viagem imaginária a Cancun.
- Isso quer dizer que serei condecorado. Falou com mais orgulho do que deveria.
A condecoração era o resultado de não haver faltado nenhum dia, durante os 25 anos que prestava serviços para um Departamento do Governo Estadual que estava sob investigação de alguma CPI. Além da medalha, da inveja do outros, ficava no dever de não poder faltar novamente.

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