sexta-feira, 25 de abril de 2008

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Notadamente Karina não estava em casa, era um alivio nos últimos tempos em que a coisas não andavam bem, ela não estar em casa quando ele chegava. Naquele fim de tarde o temporal havia derrubado alguns postes de luz da rua e a lanterna guardada no porta luvas do carro servia para alguma coisa, idéia de Karina que gostava de se prevenir de tudo. A briga que haviam tido pela manhã era pelo mesmo motivo de sempre. O aniversário de casamento e os malditos presentes. Ela queria uma coisa e ele nunca sabia o que comprar, ela com a mania de lhe dar livros.
Karina sabia que aquele dia seria mais complicado do que os outros, a comemorativa dos sete anos de casamento era mais apreensiva do que o possível terremoto que atormentava os moradores do pais nos últimos dias.
Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.
Foi ao shopping na tentativa de encontrar algo que surpreendesse Humberto, queria mais que tudo que ele ficasse extremamente feliz com o presente, mas se fosse um livro, ou algo relacionado à arte, com certeza as coisas ficariam piores. Nos últimos meses as brigas tinham aumentado, Humberto queria um cão, por que desde criança ele nunca pôde ter um cão, a mãe não permitia animais em casa. E muito menos ela. Se não tinham filhos, por que teriam cães?
Pensou no Cervantes, a obra completa do autor estava em exposição na vitrine da livraria quando ela entrou para comprar o Joyce, mas sabia que se a surpresa fosse ruim, ele não compraria algo que lhe agradasse.
Olhando pela escada rolante, avistou a pet shop, e os animais que enjaulados em cabines de vidro latiam e pediam atenção de adultos e crianças. Talvez pudesse ceder, deixar de ser turrona. Comprou um cãozinho, um puggy, bonito até.Caríssimo, com certeza ele não pagaria aquele valor por nenhum presente para ela. Mas amar tem dessas coisas, deixar na loja de animais um mês de salário apenas para ver o marido sorrir.
O resultado foi bom, Humberto ficou feliz, parecia um menino que brincava pela primeira vez. Nestor foi o nome escolhido para o animalzinho. Depois de algumas horas as coisas ficaram ruins.O cão revelou-se indigno de sua raça.Chorou alto, sujou o tapete da sala e fez xixi no sofá. O jantar foi deixado de lado. Acabaram a noite sem muitas surpresas.
Depois de alguns xingamentos que Humberto nunca deixava de dizer quando brigavam: desalmada, cruel, fria entre tantos outros Karina foi dormir, deixando ele e o cão na sala. Um belo aniversário de casamento. Afinal sete é um número cabalístico não é? O número do caos e da ordem. Caos? Ordem? Ou Cão e desordem?
Humberto ficou ali no meio da sala, olhando para Nestor que cheirava o tapete, lambia as próprias patas e na inocência que lhe cabia olhava distraidamente a sala que ainda recendia ao cheiro das velas que ele acendeu quando chegou em casa, a luz da lanterna não era suficiente para ele enxergar a comida que tinha que preparar. Era a vez dele de cozinhar o jantar de aniversário.
A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava, suas idéias de felicidade foram morrendo esses anos todos pensou. Como a princesa que foi morrendo aos poucos, com a doença lhe tirando os melhores anos da vida.
Nestor quebrou o silêncio com um rosnado para o nada, foi então que ouviu a noticia na TV, o Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração: um certo casal de velhinhos havia sido condecorados por dedicarem sua vida toda a cuidar de animais de rua. Definitivamente Karina precisava ouvir essa noticia. Mas não quis chamá-la. Ela estava feliz demais com seus livros novos.


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