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domingo, 22 de junho de 2008

3 X 1

- Nem por um decreto.
O pai não queria ir para um asilo de jeito nenhum.
- Não estou velho.
Os irmãos entreolharam-se. Cléber pigarreou. Era o primogênito. Fumante. Abriu a boca para dizer algo, mas Verinha fez-lhe um sinal com a mão.
- Papi, ninguém aqui está dizendo que você está velho -, Verinha tinha um jeitinho doce de falar, os olhinhos sempre sorrindo. Os irmãos concordaram. A mana continuou:
- Pensamos no seu bem. O senhor não gosta de dançar? Pois então, lá tem bailes da terceira idade aos finais de semana. Pelo menos o senhor se diverte, conhece pessoas novas.
- Gosto da minha casa. Daqui, só pro túmulo.
- Mas pai... -, Cléber começava a impacientar-se. Remexeu-se na cadeira. Apalpou os bolsos em busca do cigarro. Novamente Vera entrou em cena:
- Tem até hidroginástica.
- E enfermeiras gostosas -, completou Rita, lixando as unhas. Os irmãos repreenderam-na.
- Gente, o que foi que eu disse de errado?
O pai riu. Não era um riso prazeroso, mas sarcástico.
- Não vendo, não troco, não dou. Esta casa é minha e repito: daqui, só pra sete palmos abaixo da terra.
Estava lúcido, o velho desgraçado. O jeito era ganhá-lo no argumento.
- Pai, você já nem consegue subir as escadas, passa o dia sentado na sala. Pra quê precisa de um casarão desses? Dá pra construir três prédios só no terreno dos fundos.
Verinha cutucou o irmão. Será que dava para ser mais sutil?
- Vocês querem é me enterrar vivo.
- Ai, papi, que idéia! Nós vamos lá visitar o senhor sempre que der, não vamos? Ó, viu? Jamais o abandonaremos.
- Nunca vêm me ver... nunca -, balbuciou o velho para si. E soltou um pum.
O cheiro se espalhou pelo ar.
- Papai! -, Rita torceu o nariz.
- Velho porco -, ofendeu Cléber.
Verinha nada disse.
Seu Antenor bateu com a mão na perna, deu o assunto por encerrado. Pediu a bengala. Levantou-se trêmulo, encaminhou-se para o sofá, não sem antes retrucar:
- Se o lugar é assim tão bom, porque não vão morar lá vocês?

O combate

Cumprimentaram-se. Todos os dias, “Olá, tudo bem?”, assim davam início à conversa. Almoçavam juntos pontualmente no mesmo horário, na mesma mesa do asilo, uma mesmice sem fim. Mas isso não impedia de saudarem-se como se não encontrassem um ao outro há anos. Andavam repetitivos, os amigos de infância. Gagás?

- Tudo. Só peço para não falar no Internacional -, gemeu o sofredor. Os colorados haviam perdido nos pênaltis.

Antenor desanimou, adorava falar do time do outro. Torcia contra o Inter muito mais do que a favor do Grêmio. Era um enchedor de saco fenomenal. Juvenal já o conhecia e às suas implicâncias, por isso cortava seus naipes tão logo sentavam à mesa. Almoçavam todos os dias juntos, já contei isso?

O velho gremista sugeriu falarem sobre o Lula, então. Taí outra coisa que não caía bem na mesa. De futebol, fala-se numa boa. Agora, de política? Não dá. A política não muda nunca. E de mesmice já bastava a rotina do asilo.

A opinião de Antenor sobre o presidente, o colorado Juvenal também repudiava. Não que discordasse, é que diariamente, os dois almoçavam juntos e falavam sobre política. Política e futebol. Citar sempre as mesmas coisas cansa o interlocutor. Antenor viu um passarinho pousar na grade da varanda e sugeriu o assunto morcego, “Que morcego? O Batman?”, pensou Juvenal, mas deixou o outro seguir com a idéia.

- Os bichinhos de estimação do Batman. Morcegos verdadeiros. Eles fizeram casa deles no meu sótão. Mas é como se fosse na minha casa. Na minha cabeça.

Juvenal riu. Esse Antenor vivia nas nuvens. Trouxeram uma gamela com feijão. Juvenal e Antenor se enfrentaram com olhos opacos. Os dois gostavam do toucinho que boiava no caldo aguado. Sempre um pedaço apenas e aquela guerra na mesa. Dessa vez, Antenor levou a melhor. Juvenal emburrou-se.

- Eu sempre soube que tu tinha morcego nesse cérebro. Há muito tempo – provocou.

Antenor não ouviu. Deliciava-se com o pedaço suculento. Ria por dentro. Do que o outro estava falando, sobre morcegos? Começou a falar sobre o Internacional e o Lula. Juvenal, ainda pensando no toucinho:

- Isso não vale.

domingo, 18 de maio de 2008

Criar um espaço para...

A porta é de madeira e tem um sininho de vento pregado no quadrante superior. Ao girar-se o trinco de aço escovado, as varetinhas de metal do tal sino chocam-se umas contra as outras e provocam estalidos irritantes. A pequena sala é branca, com móveis brancos, só uma luzinha indireta azulada descompõe o ambiente quase hospitalar. Há uma cama, um divã, talvez seja uma maca, no canto direito de quem entra, perto de uma parede onde um quadro com miudinhos caracteres japoneses faz a gente se questionar: “Será chinês?”. A mesinha de apoio, ao pé da maca-cama-divã, quase desaparece sob uma cesta de palha trançada recheada de óleos aromáticos, ceras em pasta, paninhos úmidos, papel-toalha. O som relaxante é ambiente. Um aroma de patchoulli desprende-se de um incenso em forma de espiral que pende do teto. Um biombo esquisito, não se sabe se de bambu ou vime, equilibra-se do lado esquerdo da sala. Atrás dele, há um cabide com um roupão felpudo. Ao sair, o sininho de vento da porta solta tilintares zen.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Droga, a pilha sempre termina quando mais se precisa. Balançou a lanterna, deu tapinhas, murros, jogou-a contra a parede. Acertou algo de vidro, um vaso? Ele nada enxergava. Lembrou-se do isqueiro. Acendeu. A trêmula chama iluminou menos do que gostaria. Não ousou esbravejar, vá que a luz se ofendesse e se apagasse em revide. E agora, como achar uma chave no meio dessa bagunça? Lembro bem: ela disse que estava na gaveta da escrivaninha. Seria aquela mesa afogada em livros?

Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Mas pra que outro Cervantes, afinal? Essa coisa de colecionar traduções já estava virando uma obsessão. Sentada numa mesinha de canto da livraria, aguardava. Ele estava demorando. Era quase uma redundância: ele sempre demorava. Puxou um cigarro, cadê o isqueiro? Aquele larápio. Vai ver que até o isqueiro me roubou. Mas agora ele ia ter troco. Troco não, que não daria mais um tostão ao vagabundo. Se ele estava achando que ela amoleceria, estava muito enganado. Teria o que merecia. Ah, se teria. O cão revelou-se indigno de sua raça.

Inacreditável como uma mulher pode juntar tanta inutilidade. Pra quê dois cortadores de papel iguais? A Caterine sempre foi compulsiva. Compulsiva e ladra. Ladra não, coitada, cleptomaníaca. Não resiste, vai lá e pega. Pega e depois não lembra que pegou e diz que é dela. Aí, quando a gente pede de volta, faz aquela cara de espanto: de volta o quêêêê? Como se estivéssemos loucos. Ai, ai, merda! Odeio mesinhas de apoio. Essa doeu. Ele mancou até a poltrona, sentou na guarda, levantou a calça e tentou dar uma olhada na canela sem sucesso. Suspirou. Porra, vai ser impossível encontrar a chave assim no breu. Ela que me desculpe, vai ter que pedir outra prova de amor. Desisto. Ouviu um ranger de madeira. Suas pupilas dilataram. Caterine garantiu que não haveria ninguém em casa. “Quem está aí?”.

Acabaram a noite sem muitas surpresas, Caterine e seu cigarro apagado. Era óbvio que ele não viria, que burra. Como é que ela caía no conto da “última chance”? Quantas últimas chances havia concedido? Centenas. Centenas de milhares. Mas aí sempre a última virava penúltima e ela abria as pernas mais uma vez. Quisera ter a metade da lábia do desgraçado. Se pelo menos ele não tivesse aqueles enormes olhos inocentes. Era isso. Da próxima vez, evitaria os olhos nada inocentes dele. Pronto, Caterine, aí está você predisposta a uma próxima vez. Ah, meu Deus, não sei mais o que fazer. Por que não consigo botar um ponto final? Por quê?

Ele vinha subindo a rua bem quando ela saía encolhida de frio. Ele mancava, ela tremia. Por um instante, não sentiram dor: viram-se. Um calor invadiu o corpo dela, ele correu ao seu encontro. Abraçaram-se. Beijaram-se. Ela derreteu. Ele gemeu. Estava todo lanhado. “O que houve? Jesus Cristo, olha pra você, está sangrando!”, Caterine apavorou-se. Ele mirou-lhe com duas gigantescas bolitas azuis, dessa vez implorando por inocência: “Acho que matei um homem”.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. Sentado com o controle remoto na mão, não acertava os canais, mas aumentava o volume. Havia retirado o cortador de papel do peito, sabia que não havia nada a fazer. Sabia que não tinha mais muito tempo. A chave do cofre estava a salvo na sua mão. Conseguira evitar o escândalo. Só Deus sabe o que aconteceria se aqueles papéis caíssem nas garras da oposição. Ou da filha xiita do patrão. Eram documentos que valiam ouro. Valeram a sua vida. Talvez o excelentíssimo senhor representante do povo não se importasse com a poça de sangue no seu sofá predileto. Talvez... O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.