Logorrali
Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Suspiro de admiração, puro deleite. Amélia, bela mulher, sorria em admirá-la. Melhor noite de sua vida. A luz da lanterna, por certo, não atrapalharia o sono da amada . Não podia evitar cobri-la de mimos, trouxe-lhe, desta vez, um Cervantes. Notara quando Amélia folheou-o na livraria, como a uma relíquia. Parecia não conseguir devolvê-lo à estante.
Amélia, fingindo dormir, deixou que ele, silencioso, largasse o pacote no lado esquerdo da cama. Na manhã anterior, quando passeavam pelos cafés e livrarias, cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Harold era observador. Fez bem em devolver o James Joyce. Quem sabe não se depararia com Don Quixote na manhã seguinte? Ah, adorável Harold, que homem previsível.
Abriu os olhos e viu o pacote. Precipitou-se em pegá-lo. Harold a espionava atrás da cortina.
-Cervantes! Exclamou às gargalhadas. – Ah, adorável Harold que homem... O cachorro adentra latindo de forma descontrolada, denuncia o esconderijo de Harold. O cão revelou-se indigno de sua raça.
Harold fica sem graça.
- Cão inoportuno. Queria apenas te olhar dormindo antes de ir embora.
Amélia sorri e lhe estende os braços.
- Assim me deixas mal acostumada. Cervantes, como adivinhaste?
Ele vai até ela, lhe dá um beijo demorado e pede que o espere bem cheirosa, pois à noite voltará. Despede-se e vai.
Amélia rola na cama, prosseguem as gargalhadas. Fica de bruços a estudar as novas artimanhas que utilizaria nesta noite: “ele não escaparia”.
Jantar à luz de velas, vinho tinto, cabernet sauvignon, música romântica, carícias, acabaram a noite sem muitas surpresas. Harold passaria o final de semana com ela, no apartamento. Era sábado e sua esposa estava viajando.
Pediram comida chinesa, comeram na sala e assistiram TV ao acaso. Foram de novo pra cama, levando as taças de vinho. Preguiças de uma tarde morna, janelas cerradas, refúgio de amantes.
O telefone toca e Amélia pede um tempinho, vai atendê-lo na sacada. Num impulso, Harold pega a extensão. “Sim, ele ainda está comigo, no apartamento.”; “claro, conforme havíamos combinado, Cristina, esta tarde ele já estará morto”. Harold sente fisgar as costas. A outra voz é conhecida: Cristina, sua esposa. “Tudo, tudinho. Como você falou, até já ganhei o Cervantes.” “Sim, coloquei no vinho”. A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. “Quero o depósito hoje”. Harold sente a garganta queimar. “É questão de horas, talvez minutos”. E fica com a visão turva. A TV prossegue noticiando coisas inúteis: o governador nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração. A ligação termina. Amélia retorna sorrindo.
quinta-feira, 1 de maio de 2008
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4 comentários:
Muito bom, Vivi. Adorei esta tua solução. De todas que já li a tua me parece a mais descolada das obviedades, criaste uma história muito fluida. Joséte
Muito obrigada, Joséte!
Pra mim, tua opinião é valiosa.
Um grande beijo
Nossa!! esse eu amei, seria um trecho de um livro que eu leria numa sentada de tanta curiosidade.
MUITO MUITO MUITO BOM
Grandes promessas então, de uma grande escritora
Beijos e sucesso
Vivi achei muito tri..adoro este tipo de leitura!!
bjsClaudia
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