segunda-feira, 26 de maio de 2008

Criar um espaço para ...

A luz do salão principal é fosca. O lugar é amplo e bem arejado, com janelões de ferro e vidro, ornados com cortinas clássicas em tons pastéis e marinho, bom para dissipar a fumaça dos charutos e das velas. Há muitos lugares para sentar, normalmente ocupados. Grandes vasos de vidro, que nascem do chão, abrigam ramos de lírio e copos-de-leite. Das paredes pendem telas antigas, abstratas, pintadas pelo mesmo alguém cujo nome não é legível. Ao lado da porta principal está o piano, sobre ele, os cinzeiros limpos. No fundo da sala, o bar. Bancos altos e estofados, bancada de madeira lustrosa e escura como o assoalho, muitas bebidas. Sentado no último banco, um homem calvo acaricia nostalgicamente o saxofone, fazendo-o gemer alto.
Um espaço para X

Uma sala ampla e limpa, mobiliada com economia. Um sofá de linhas retas, forrado com veludo preto, posicionado de frente para uma TV plasma fixa na parede azul hortência. Dois pufes brancos. Um móvel baixo, de madeira escura, apóia um aparelho de DVD e muitos filmes. Uma mesa redonda, com tampo acrílico transparente, suportada por um único pé de base também redonda. Duas cadeiras, estilo Luís XV. Sobre a mesa, uma orquídea branca. Uma reprodução de Escher domina a parede oposta à TV. O assoalho de tacos claro é despido de tapetes. Na parede em frente à porta de entrada, uma grande janela com as cortinas abertas traz a paisagem urbana para o interior. Por cima dos edifícios antigos vê-se o rio, ao longe. Ao lado da porta, um esguio totem de pedra da altura de um homem. Uma única porta liga a sala ao resto do apartamento.
Stela Rates

domingo, 25 de maio de 2008

criar um espaço para ... (ou o que é o que é)

Dois chinelos sobre a mesa. Um fogão velho com o forno aberto. Quase debaixo da mesa, uma batedeira quebrada. Uma metade de um tapete persa. Uma geladeira azul que guarda sapatos e roupas. Uma moldura vazia na parede. Uns trocados e um caderno de culinária sobre a pia. Um pôster colorido mas descascado. Uma televisão como floreira. Um cheiro de mofo misturado com vegetais frescos. Um cinto novo preso ao lustre servindo de forca. Dois chinelos sobre a mesa.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A personagem vai ao boteco

18:00 – O bar está lotado. Ângelo chega pede uma mesa e uma cerveja. O garçom consegue a mesa, mas esquece da cerveja. Ao contrário traz uma coxinha. Sem reclamar, Ângelo come a coxinha bem devagar. A devora, engole toda. Horas antes tivera se encontrado com ela. Mas agora ele só devora. E encontra camarões escondidinhos. Escuta música. Não há ninguém para conversar. Escuta a música e batuca.

18:37 – Ela chega. A coxinha vira coxão. Cerveja? Ângelo quer beber Maria. Mas Maria está sem interesse. Angelo não entende. Onde foi que errou? Angelo está sem colarinho. Enfim, sem colarinho ele bebe Maria gelada, acha tudo ótimo e vai para casa sonhar com o resto. Que resto?

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Criar espaço para...

O quarto tem um quê de escuro, apesar da janela aberta para o sol das onze. Na cama de ferro, dir-se-ia uma cama dupla de hospital, dois travesseiros brancos muito próximos, e a maior parte de um cobertor velho e xadrez, no ensaio da queda.

Um vinil gira na vitrola. Das caixas de som chega uma cantoria de monstro, kommienezuspadt, kommienezuspadt.

Pende de um prego no teto o que chamam mosquiteiro, e de um na parede o que chamam Marlon Brando (montado em motocicleta).

Sobre a mesa-de-cabeceira, herança de algum avô, uma garrafa de gim (dois terços vazia), um abajur esquecido aceso, marcas redondas de dedo no pó, e um telefone vermelho que toca.

No cômodo contíguo, uma voz quebradiça de menina repete: L mais A, LA, L mais E, LE, L mais I, LI, L mais O, LO, L mais U, LU.

A agulha encontra um arranhão, ha ha ha ha, ha ha ha ha, ha ha ha ha...

terça-feira, 20 de maio de 2008

Criar um espaço para...

Uma sala de vinte metros quadrados. Num canto, uma grande e pesada escrivaninha de madeira maciça, escura, que encobre parte de uma cadeira de couro marrom; noutro, uma cristaleira no mesmo estilo. Em toda parte, uma infinidade de objetos cuja contagem e descrição levariam dias. Pequenos tesouros afetivos, como a coleção de corujas. De todos os tipos, cores e tamanhos. Duzentas, talvez. Uma delas, multicolorida, pintada numa caixa de fósforo, lembrança da Colômbia; outra, de pano, presa por um alfinete a um quadrado de madeira, presente de um certo Romeu; uma terceira, de mármore branco. Muitos livros, de assuntos variados, em inglês, francês, português e catalão. Dezenas de dicionários, velhos e novíssimos. Um globo de pedra. Disputando o título de mais pesado da sala com a escrivaninha e o armário. Levíssimas e escassas partículas de poeira.

O quarto de

(Acho que ousei bastante. E acabei me impondo um exercício de estilo.)

As paredes do quarto são de um branco ininterrupto, sem quadros, sem espelhos, sem estantes ou prateleiras. Mergulhando por trás da cabeceira da cama, com as escamas pintadas em dois tons de azul e uma esteira de purpurina no lombo, some a cauda de uma sereia. No criado mudo do lado direito, sepultando-o, dezenas de livros formam uma montanha. No criado mudo do lado esquerdo, há um abajur e um copo transbordando água. O carpete do chão é de um gris claro imaculado. A mobília é simples, essencial e esvaziada. De um lado, duas cadeiras e uma mesa encostam-se à parede. Do outro, perto dos pés da cama, duas poltronas de vime cercam uma mesa baixa. Em um canto, com a tela virada para a parede, há um aparelho de TV. Em um outro canto, sobre guias telefônicos gastos, há um notebook iluminado, conectado a uma tomada. Na telinha do computador, uma atleta cruza a linha de chegada. Jogados no carpete sem cuidado, misturam-se uma calça, uma camiseta, umas meias e um par de sapatos.

Descrição criativa e narração que deriva do objeto:

O objeto se traduz em um pedaço de papel rígido — papelão branco — quadrado em sua forma, com uma área em torno de seis centímetros quadrados. Nessa pequena “bolachinha” de papelão há um desenho de um homem com aparência semelhante ao próprio dono. Em caneta azul, o homem parece envolto por incontáveis espirais, que tomam as sobras brancas do pequeno papel. De óculos e com cabelos bem crespos, expõe uma fisionomia preocupada. Com nariz alongado e rosto comprido, não revela de imediato a sua identidade, flagrada pela quase insignificante inscrição à direita: “Gutenberg”, sugerindo ser o alemão Johannes Gutenberg, aquele que primeiro contribuiu para a tecnologia da impressão e da tipografia no mundo, no século XV. O outro lado da “bolachinha” está completamente vazio, branco.

Gutenberg impresso em uma bolachinha de papel. Impresso apenas de um lado, deixando o outro vazio. Aquele que primeiro imprimiu na história surge pensativo no desenho, envolto em idéias espirais, tomando completamente o seu espaço. Como poderia ter adivinhado ele que estaríamos todos, hoje, em pleno novo milênio, assoberbados de espirais em torno de nossas mentes? O gênio da impressão literalmente desenhado e condensado em nódulos impressos. Estamos nós, também condensados em nossos mundos, impressos em nossas verdades, estáticos em nossas possibilidades? Como Gutenberg comprimido naquele papel. Gênio impresso ele é hoje, como nós, estampados na desordem do nosso tempo. Ninguém tem se lembrado, como Gutenberg significa no pequeno papel, de procurar pelo vazio do lado oposto. Você se lembra? Ou fica entre as espirais da vida moderna? Essas espirais do século XXI que pressionam a nossa cabeça.

Criar tipo característico para...

Aymah. Seu nome inscrito bem acima do espelho para identificar seu local reservado. Uma bolsa de água quente aquece a pequena poltrona de couro vermelho enquanto a dona não termina seu trabalho. Seu espaço se resume a mais ou menos um metro e meio de comprimento por um metro de largura. Em frente, imagens que se refletem no grande espelho. Em ambos os lados do espelho, painéis de cortiça exibem fotografias com imagens da terra natal de Aymah: o Japão; e, as instruções para uma metódica dieta seguida pela trupe. Na bancada, logo abaixo do espelho, estão todos os cremes para retirada da maquiagem, pincéis, lápis de olhos, blushes, sombras e batons. Há, ao lado das plumas vermelhas, uma caixinha de algodão e outra de lenços de papel. O copo d’água sempre repousa sobre a superfície e esvazia-se lentamente conforme ela se organiza para acompanhar o espetáculo. Na gaveta, na lateral, abaixo do painel de cortiça do lado direito, há chocolates. Doces que fazem doer menos. Doces que trazem a única alegria até a volta para casa.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

A moeda da Mariza

A moeda e o beijo

Moedas são comuns. A de um real tem mais valor. Compra mais. Ninguém despreza. Tem o miolo prateado, a borda dourada. Tem a cara e o número Um.



- Cara ou coroa?

Os dois pitocos disputavam a beijoca da Tininha. Todo mundo gostava da Tininha, mas ela disse que só daria um beijinho. E só seria na bochecha do Zezinho ou na bochecha do Bebeto. Zezinho porque era bem comportado e Bebeto porque fazia muitos e muitos gols na Educação Física. Pobrezinhos, pois! Tão novinhos, tão apaixonados e já acuados pela crueza feminina assim tão de perto, assim tão cinqüenta por cento. Cruel isso tudo. Mas Tininha valia a peleia. Era uma menininha cheia de graça, cheia de si.

A moeda era grande, muito maior que as pontas gorduchas dos dedinhos apaixonados. Zezinho olhou para a moeda, pensou, olhou mais um pouquinho e disse:

- Como assim cara ou coroa? Tem a cara da princesa, mas não tem a coroa do rei! Não quero mais brincar. Vou perguntar para a Tininha quem ela prefere beijar e pronto! Assim é mais fácil!

Coragem Zezinho, vá com calma, meu amiguinho. E se ela disser que prefere o Bebeto? Aí sim tu vais descobrir as lamúrias do amor...

- Não, não, não Zezinho! Assim não vale! Tem que ser na sorte, na moedinha. Mamãe disse que é feio trapacear. Vamos fazer assim: Cara ou Número Um?

- Tá bom, Bebeto. Assim tudo bem.

Jogaram a moedinha brilhante, brilhante que rodopiou três vezes e caiu no Um. Tininha perguntou:

- Daí gurizes? Quem ganhou?
Xiiii... Senti algum esquecimento no ar. Ai, ai rapazinhos: faltou escolher os lados. O beijo ficou sem dono!
Tininha agarrou a moeda sem dó. Correu e pediu para a profe comprar um chocolate bem grande.

Descrição de espaço para...

A sala de 30 metros quadrados tem espelhos e barras horizontais em todas as paredes. O chão é especial, um tablado em Imbuia com tecnologia para absorção de impactos. Nos espelhos, estão estrategicamente dispostas fotografias emolduradas da década de 70. Uma mesma bailarina figura em todas: em espetáculos, camarins, em aula ou simplesmente fazendo pose. Espanta a magreza doentia da bailarina. Sobre o aparelho de som, logo abaixo da janela que dá para um pequeno pátio, destaca-se uma outra fotografia. Parece ser a mesma bailarina só que em trajes comuns. Ainda magérrima, fica evidente a barriga enorme, apontando o final de uma gestação. Sorri muito na foto. Há uma espécie de bengala de madeira escorada em um dos cantos. Atrás da porta, estão penduradas sapatilhas bem pequeninas, de uma criança. Abaixo das sapatilhas, uma placa cor de rosa enfeitada diz: mãe e filha dançam aqui.


O apartamento é antigo, fica no segundo andar de um prédio no centro da cidade, perto da universidade. Duas janelas grandes permitem que a luz entre durante toda a manhã. É grande a sala de estar, onde um sofá e duas poltronas amarelas combinam com o piso de madeira e fazem companhia a mesa de centro.
A sala é bagunçada, há folhas de papel brancas pelos móveis, mesas e sofá. A mesinha da sala de estar abriga alguns potes com água. No canto esquerdo da porta de entrada, há uma estante com livros, um aparelho para tocar música e alguns cds de blues.
A cozinha é o espaço menos bagunçado do apartamento. Sobre a mesa da cozinha, uma fruteira com frutas de cera enfeita o ambiente. Algumas canecas de café sobre a geladeira dividem o espaço com o velho pingüim de cerâmica.
O quarto é o mais bagunçado, a cama está por fazer e os lençóis são velhos e surrados. Os girassóis estampados nas fronhas estão quase desaparecendo.
Em frente à janela grande do quarto, fica a mesa, livros, cadernos, pedaços de papeis jogados, todas as coisas misturadas. Folhas brancas vazias estão em toda parte. Há uma luminária verde com haste de metal dourado sobre a ponta esquerda da mesa.
Ao lado da cama o criado mudo guarda um Buda, com um livro: A vida de Buda. O quadro de Van Gogh está no chão, encostado na parede.

domingo, 18 de maio de 2008

Criar um espaço para...

A porta é de madeira e tem um sininho de vento pregado no quadrante superior. Ao girar-se o trinco de aço escovado, as varetinhas de metal do tal sino chocam-se umas contra as outras e provocam estalidos irritantes. A pequena sala é branca, com móveis brancos, só uma luzinha indireta azulada descompõe o ambiente quase hospitalar. Há uma cama, um divã, talvez seja uma maca, no canto direito de quem entra, perto de uma parede onde um quadro com miudinhos caracteres japoneses faz a gente se questionar: “Será chinês?”. A mesinha de apoio, ao pé da maca-cama-divã, quase desaparece sob uma cesta de palha trançada recheada de óleos aromáticos, ceras em pasta, paninhos úmidos, papel-toalha. O som relaxante é ambiente. Um aroma de patchoulli desprende-se de um incenso em forma de espiral que pende do teto. Um biombo esquisito, não se sabe se de bambu ou vime, equilibra-se do lado esquerdo da sala. Atrás dele, há um cabide com um roupão felpudo. Ao sair, o sininho de vento da porta solta tilintares zen.

16 CONDIÇÕES PROFISSIONAIS OU PESSOAIS LIGADAS A:

1- Uma cantora de ópera
2- Um pintor fracassado
3- Um tradutor de chinês
4- Uma dona de casa estressada
5- Um contorcionista contundido
6- Um palhaço
7- Um louco
8- Um diplomata
9- Um índio
10- Um mágico de circo
11- Um motorista
12- Um mendigo
13- Uma menina gordinha
14- Uma prostituta
15- Um freegan
16- Um garoto de programa

Exercício: Criar um espaço para a personagem.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

***

... e sai a ...
Castigando o chão, o sol racha-o até o horiz...
numa extensa linha de leste a oeste a imagem trêmula que engana a visão nos tons do terracota ondulantes até o limite. O inicio do cé...
sem manchas brancas, puro, numa intensa azul luminosidade é interrompida pela figura pret...
na planície como, esparramado no chão, se juntasse para o norte em uma espécie de tronco escuro, grosso, que vai apertando até o limiar deitado num circulo delgado. Partindo mais acima, dois galhos estendidos de oriente a ocidente vestidos até os punhos. E nas pontas, cinco retas desesperadas. E no extremo norte adornado, apontando ao céu, de súbito a fruta abre a boc...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Conto criado a partir da caixa de fósforos de Marinella

Fósforos de cor azul maia e palito tão fino que dá medo de usar


Fósforos de cor azul maia e palito tão fino que dá medo de usar. Azul fusão entre o índigo e a paligorsquita: o menino disse. Eu, eu não sei o que é. Fósforos da cor mais bela que eu já vi: azul maia de Chichén Itzá. Cor sagrada maia. Fósforos, quem sabe, sagrados também. 23 fósforos escondidos em uma caixinha pequenina que não lhes faz justiça, com as cores banais da bandeira colombiana e a frase “Cerillas de Colombia”. Caixinha bonitinha. Com, na outra face, uma coruja de olhos amarelos exorbitantes sobre fundo preto. Comprada em Tuluá.

Paligorsquita, o menino repetiu. Três vezes: Pa-li-gors-quita. Qui-ta. Usté no entiende? Vu né comprené pá? O menino não se desesperou, quis fazer-se entender. Só não falava português. Mas quando soube que éramos de São Paulo falou de uma assentada os nomes e sobrenomes de todos os presidentes do Brasil. Crianças pobres espertas da América do Sul. A coruja, ele disse, esticando o braço, aproximando-a do meu nariz, era um deus maia. Isso eu não sei se acreditar. Difícil acreditar nessas crianças. Mas o azul maia. Esse índigo com paliguinquita, que mesmo que fosse combustível eu não queimaria. Não sou religiosa. Mas aquela criança, aqueles olhos.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Happy Hour Criativo

Gente querida,

Durante o intervalo de ontem, surgiu a idéia de nos reunirmos em um barzinho depois da nossa próxima aula. O que vocês acham? Eu sugiro o Natalício, um boteco bem legal que fica quase em frente ao Senac. Podemos nos organizar em caronas, cacundas, bus, táxis, passeata rsrsrs... É bem fácil de chegar. Tenho certeza que iremos nos divertir!

Um beijo,

Juliana (a que senta ao fundo, ao lado do Mauro e de costas para o Cícero)

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Droga, a pilha sempre termina quando mais se precisa. Balançou a lanterna, deu tapinhas, murros, jogou-a contra a parede. Acertou algo de vidro, um vaso? Ele nada enxergava. Lembrou-se do isqueiro. Acendeu. A trêmula chama iluminou menos do que gostaria. Não ousou esbravejar, vá que a luz se ofendesse e se apagasse em revide. E agora, como achar uma chave no meio dessa bagunça? Lembro bem: ela disse que estava na gaveta da escrivaninha. Seria aquela mesa afogada em livros?

Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Mas pra que outro Cervantes, afinal? Essa coisa de colecionar traduções já estava virando uma obsessão. Sentada numa mesinha de canto da livraria, aguardava. Ele estava demorando. Era quase uma redundância: ele sempre demorava. Puxou um cigarro, cadê o isqueiro? Aquele larápio. Vai ver que até o isqueiro me roubou. Mas agora ele ia ter troco. Troco não, que não daria mais um tostão ao vagabundo. Se ele estava achando que ela amoleceria, estava muito enganado. Teria o que merecia. Ah, se teria. O cão revelou-se indigno de sua raça.

Inacreditável como uma mulher pode juntar tanta inutilidade. Pra quê dois cortadores de papel iguais? A Caterine sempre foi compulsiva. Compulsiva e ladra. Ladra não, coitada, cleptomaníaca. Não resiste, vai lá e pega. Pega e depois não lembra que pegou e diz que é dela. Aí, quando a gente pede de volta, faz aquela cara de espanto: de volta o quêêêê? Como se estivéssemos loucos. Ai, ai, merda! Odeio mesinhas de apoio. Essa doeu. Ele mancou até a poltrona, sentou na guarda, levantou a calça e tentou dar uma olhada na canela sem sucesso. Suspirou. Porra, vai ser impossível encontrar a chave assim no breu. Ela que me desculpe, vai ter que pedir outra prova de amor. Desisto. Ouviu um ranger de madeira. Suas pupilas dilataram. Caterine garantiu que não haveria ninguém em casa. “Quem está aí?”.

Acabaram a noite sem muitas surpresas, Caterine e seu cigarro apagado. Era óbvio que ele não viria, que burra. Como é que ela caía no conto da “última chance”? Quantas últimas chances havia concedido? Centenas. Centenas de milhares. Mas aí sempre a última virava penúltima e ela abria as pernas mais uma vez. Quisera ter a metade da lábia do desgraçado. Se pelo menos ele não tivesse aqueles enormes olhos inocentes. Era isso. Da próxima vez, evitaria os olhos nada inocentes dele. Pronto, Caterine, aí está você predisposta a uma próxima vez. Ah, meu Deus, não sei mais o que fazer. Por que não consigo botar um ponto final? Por quê?

Ele vinha subindo a rua bem quando ela saía encolhida de frio. Ele mancava, ela tremia. Por um instante, não sentiram dor: viram-se. Um calor invadiu o corpo dela, ele correu ao seu encontro. Abraçaram-se. Beijaram-se. Ela derreteu. Ele gemeu. Estava todo lanhado. “O que houve? Jesus Cristo, olha pra você, está sangrando!”, Caterine apavorou-se. Ele mirou-lhe com duas gigantescas bolitas azuis, dessa vez implorando por inocência: “Acho que matei um homem”.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. Sentado com o controle remoto na mão, não acertava os canais, mas aumentava o volume. Havia retirado o cortador de papel do peito, sabia que não havia nada a fazer. Sabia que não tinha mais muito tempo. A chave do cofre estava a salvo na sua mão. Conseguira evitar o escândalo. Só Deus sabe o que aconteceria se aqueles papéis caíssem nas garras da oposição. Ou da filha xiita do patrão. Eram documentos que valiam ouro. Valeram a sua vida. Talvez o excelentíssimo senhor representante do povo não se importasse com a poça de sangue no seu sofá predileto. Talvez... O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Logorrali ou Tragédia em quadrinhos (tipo B)

CENA 1 (A casa)
Era noite quando o ladrão chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Um casal de Velhos assistia televisão. Antes que ele pudesse largar a lanterna e usar o pé-de-cabra, as Erínias, em forma de moscas, invadiram três buracos de sua cabeça. Estamos, disse uma das Benevolentes, próximas do nosso intento. E voaram para dentro da casa, matando o casal de Velhos.

CENA 2 (A visita)
O Escritor caminhava com seu chiuaua. Cedo tivera uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Em frente à vitrine da livraria, O Escritor interrompeu o assobio, uma série de corpos se debatiam dentro da loja, no meio da horda, identificou três mulheres seminuas. O Escritor correu, gritando o nome Orestes. Ao tentar atravessar a rua, foi atropelado. Seu fiel amigo latiu para o carro. Uma das três mulheres, olhando o chiuaua, perguntou se matariam cães. O cão revelou-se indigno de sua raça, respondeu a outra.

CENA 3 (A Peripécia)
As Erínias agiram. Desprendiam-se da Antiguidade e viam buscar o que lhes era de direito. Acabaram a noite sem muitas surpresas: parte da população da Terra recebera funesta visita.

CENA 4 (A casa)
A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas (não as Erínias, mas aquelas que aparecem dos corpos em decomposição) os funerais da Princesa, morta um dia antes, suicídio. Tinha é culpa no cartório, sentenciou o Âncora do jornal da tarde, morrendo ao vivo para alguns Telespectadores.

CENA 5 (Declaração Universal dos Direitos Humanos)
Depois de sete dias de Terror, o governador, grande Zeus, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração: a dos deuses do Olimpo. Não foi dessa vez a Paz Mundial, disse Ares, batendo na cabeça de um Homem.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Logorrali

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Suspiro de admiração, puro deleite. Amélia, bela mulher, sorria em admirá-la. Melhor noite de sua vida. A luz da lanterna, por certo, não atrapalharia o sono da amada . Não podia evitar cobri-la de mimos, trouxe-lhe, desta vez, um Cervantes. Notara quando Amélia folheou-o na livraria, como a uma relíquia. Parecia não conseguir devolvê-lo à estante.
Amélia, fingindo dormir, deixou que ele, silencioso, largasse o pacote no lado esquerdo da cama. Na manhã anterior, quando passeavam pelos cafés e livrarias, cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Harold era observador. Fez bem em devolver o James Joyce. Quem sabe não se depararia com Don Quixote na manhã seguinte? Ah, adorável Harold, que homem previsível.
Abriu os olhos e viu o pacote. Precipitou-se em pegá-lo. Harold a espionava atrás da cortina.
-Cervantes! Exclamou às gargalhadas. – Ah, adorável Harold que homem... O cachorro adentra latindo de forma descontrolada, denuncia o esconderijo de Harold. O cão revelou-se indigno de sua raça.
Harold fica sem graça.
- Cão inoportuno. Queria apenas te olhar dormindo antes de ir embora.
Amélia sorri e lhe estende os braços.
- Assim me deixas mal acostumada. Cervantes, como adivinhaste?
Ele vai até ela, lhe dá um beijo demorado e pede que o espere bem cheirosa, pois à noite voltará. Despede-se e vai.
Amélia rola na cama, prosseguem as gargalhadas. Fica de bruços a estudar as novas artimanhas que utilizaria nesta noite: “ele não escaparia”.

Jantar à luz de velas, vinho tinto, cabernet sauvignon, música romântica, carícias, acabaram a noite sem muitas surpresas. Harold passaria o final de semana com ela, no apartamento. Era sábado e sua esposa estava viajando.
Pediram comida chinesa, comeram na sala e assistiram TV ao acaso. Foram de novo pra cama, levando as taças de vinho. Preguiças de uma tarde morna, janelas cerradas, refúgio de amantes.
O telefone toca e Amélia pede um tempinho, vai atendê-lo na sacada. Num impulso, Harold pega a extensão. “Sim, ele ainda está comigo, no apartamento.”; “claro, conforme havíamos combinado, Cristina, esta tarde ele já estará morto”. Harold sente fisgar as costas. A outra voz é conhecida: Cristina, sua esposa. “Tudo, tudinho. Como você falou, até já ganhei o Cervantes.” “Sim, coloquei no vinho”. A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. “Quero o depósito hoje”. Harold sente a garganta queimar. “É questão de horas, talvez minutos”. E fica com a visão turva. A TV prossegue noticiando coisas inúteis: o governador nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração. A ligação termina. Amélia retorna sorrindo.