domingo, 27 de abril de 2008

Logo-Rallye

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Lamentou não ter comprado o livro que ela pedira de presente. Bem que tentou.
“Compra não autorizada. O senhor quer que eu passe de novo?”
Não adiantava se lamenta. Ela ficaria uma arara, independente da explicação. Colou a orelha na porta, tentando escutar o se passava.
No interior do quarto, Dona Branca, resmungava de um lado pro outro. O cachorro deitado observava a dona como se entendesse o discurso. “Toc-toc”. A porta abre. Coronel Mostarda de mãos abanando. Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.
- Feliz aniversário! Querida, tentei comprar o livro que pediu, mas o cartão não passou. Fez alguma compra com o cartão? – disse o velho Mostarda.
- Nem no meu aniversário. Que absurdo. – disse Dona Branca. – Imprestável. Deve gastar todo dinheiro da nossa aposentadoria com piranhas.
- Não, amor. Deve ter sido um engano da operadora.
- Nosso casamento foi um engano. Rex, Pega. Pega, Rex.
Bem acomodado o cão revelou-se indigno de sua raça. Dona Branca correu Mostarda e cão a bofetões. Bateu a porta. A dupla acomodou-se no sofá. O televisão mostrava as notícias do mundo. Acabaram a noite sem muitas supressas.
No quarto, Dona Branca não achava posição para dormir. Volta e meia resmungava. Quando o relógio da penteadeira marcou quatro horas, levantou. Foi pé por pé até a sala. Coronel Mostarda e o cão dormiam. Dona branca pegou o castiçal. Com um golpe certeiro, atingiu o velho. O cão acordou. Latiu. Voltou para cama às pressas. O pastor a seguiu até a porta do quarto. Ali deitou. A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava.
Ao acordar, Dona Branca ligou para a polícia. Dizia que provavelmente um assaltante houvesse matado o velho Coronel. Os policiais também estavam certos disso. Até o pastor alemão os levar até o quarto da mulher, revelando, embaixo da cama, o castiçal manchado de sangue. O governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração. Reconhecendo os bons serviços do velho cão. Dona branca está em liberdade. Os advogados conseguiram provar que foi um ato de sonambulismo.

***

Tudo escuro, pra variar. Estes filmes são mesmo assim. Pegou a lanterna do carro, atravessou o portão, passou a mão nas rosas e feriu-se com um espinho. Chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Deve ter faltado luz em toda a cidade. Examinou o livro com a lanterna, pois não queria manchá-lo com sangue - claro. De manhã, atrás da porta da sala, ouviu-a dizer que cedo tivera uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. O cachorro sentiu a sua presença e correu ao seu encontro no escuro. No clarão do raio ele o viu correr em sua direção, (que susto), era pra ser. O Pastor Alemão, ansioso na fuga derrubou-lhe o livro e a pasta. O cão revelou-se indigno de sua raça.

Na casa, com uma vela acesa na mão, sua mulher desceu a escada. A luz voltou e eles se encontraram. Abraçam-se. Pra mim eles acabaram a noite sem muitas surpresas.

Mudo de canal, cansei desse filme. Levanto da poltrona, deixando a TV ligada – tinha certeza de que ali, naquela sala deserta, escura e chata, a TV, transmitiria para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agoniza naquele quarto com cheiro a mofo. Subo as escadas, para ver meu pai, eu sei, pela última vez. Do lado de fora do quarto, minha mãe fala com meu tio de política – nunca gostei dele. Entro direto no quarto passando pelos dois e só consigo ouvir a noticia de que o governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração o algo parecido - ele sempre sonhou em receber uma. A TV do quarto, ligada, transmite o mesmo funeral. E lá está ele, tentando respirar fundo. Pele e osso.

Amanhã, quando o quarto estiver vazio, vou abrir estas janelas. Talvez o cheiro a mofo passe.

Logorrali

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Não havia nada. Agora dera para ouvir coisas. Na certa estava ficando caduco. Mas a voz era tão clara, a voz era insistente e sussurrava Seu José, Seu José.

A luz achou somente um sapo, gordo, o papo pulsante. Deu outro suspiro e preparou-se para entrar em casa.

Seu José, Seu José: ele virou a cabeça. Era Marta. Soube mesmo com a lanterna desligada. Era Marta que chamara contida, pensando nos vizinhos, adivinhando errado Seu José no quarto.

Ela entrou. Vestia seu casaquinho de lã amarelo e trazia na mão um livro, mão pequenina que tinha, “El coronel no tiene quien le escriba”. Disse que cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Então comprou García Márquez.

Viera lendo no ônibus, e já tinha trechos favoritos, como mira en lo que ha quedado nuestro paraguas de payaso de circo, ahora sólo sirve para contar las estrellas, etc., os quais leu em voz alta, como José fosse mil.

Ele a ouvia com olhinhos de cão sexagenário. Queria mordê-la, arrancar-lhe a carne e roer-lhe os ossos. Não o fez. O cão revelou-se indigno de sua raça, apesar do frio, apesar de sabe, Seu José, quando eu venho aqui eu não tenho vontade de voltar pra casa.

Mas Marta voltou, porque voltar custava só uma quadra ou duas, e a mãe esperava-a roncando. Acabaram a noite sem muitas surpresas.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava, a mãozinha de Marta traçando no ar formas impossíveis, enquanto a outra segurava o livro.

Dormiu de tédio, durante o noticiário, e sonhou que o Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração para as pessoas de mãos pequenas e casacos amarelos.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Logo-rallye


"O homem dissipa a sua angústia inventando ou adaptando desgraças imaginárias" Raymond Queneau

Joana acordou num susto. Barulhos no andar de baixo da casa. Acorda João. Tem alguém lá embaixo. Ela sempre faz isso. Ele levanta e nunca acha nada. Ele fica puto e volta a dormir. Ela foi dessa vez. Ela chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Era seu filho, outra vez chegando bêbado na madrugada. O filho vê a mãe e começa a se desculpar – foi o cachorro quente mãe – enquanto Joana o ajuda até o banheiro. Esperou até o menino terminar o banho. Como podia ter tido filhos tão diferentes. A filha, aluna brilhante. O filho, boêmio completo. Ao sair do banheiro, Joana disse ao filho que conversariam na manhã seguinte. Ficou sem sono.

Ligou a TV. No canal de compras era anunciado: queima de James Joyce. Sentiu um arrepio. Era só uma liquidação. Bizarro. Era o que a filha havia pedido mesmo? Talvez fosse o tal de Cervantes. O João era unha de fome. Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. Assim decidiu deixar de lado. Ao ir para cama, encontrou com seu micro poodle pelo corredor. Estranho. Deveria estar dormindo.

No quarto o travesseiro estava todo molhado. Ficou furiosa. O cão revelou-se indigno de sua raça. Acordou toda a casa gritando com o cão. Xingou, esbravejou. Quando ligaram a luz, percebeu que era apenas uma mancha que a luz da janela entreaberta havia refletido em seu travesseiro. Onde ando com a cabeça, pensou. As crianças vieram lhe consolar, o marido também. Precisava de férias mesmo. No final, acabaram a noite sem muitas surpresas.

Na manhã seguinte, ao chegar do supermercado, Joana se deparou com o filho de cor péssima, aspecto horroroso. A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. A princesa Daiana havia morrido num acidente de carro trágico. Mas quem se aproveitava no mal estar do menino, era a criação das moscas do açougue ao lado da casa.

Durante o almoço, João falava de assuntos supérfluos, como sempre. Joana ficava pensando em seus assuntos supérfluos. As crianças assistiam TV. Todos faziam de conta que estavam prestando atenção, uns aos outros. Até que João terminou sua história:
- O governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.
- O que você quer dizer com isso? Disse Joana, voltando de sua viagem imaginária a Cancun.
- Isso quer dizer que serei condecorado. Falou com mais orgulho do que deveria.
A condecoração era o resultado de não haver faltado nenhum dia, durante os 25 anos que prestava serviços para um Departamento do Governo Estadual que estava sob investigação de alguma CPI. Além da medalha, da inveja do outros, ficava no dever de não poder faltar novamente.

LOGORRALI - 24/04/2008

Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Nunca conseguiria chegar a tempo de salvá-la. Por mais que corresse, o relógio seria mais rápido. A livraria estava para fechar, e antes que ela saísse, não haveria nada que os seguranças pudessem fazer. A bomba destruiria tudo: livros, seguranças, paparazzo, realeza. Ninguém saberia onde a bomba foi instalada, o bilhete só informava sobe o poder destrutivo do artefato, um quarteirão indo pelos ares. Ela estava agora na livraria, escolhendo um presente para ele mesmo, de quem ela nem desconfiava ser mais do que um inocente estudante. Ele buscou a maleta, as armas, saiu do porão, colocou a coleira no cachorro e saíram os dois, correndo.
Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.
Se desse este livro como presente, saberia o que ele diria: uma princesa, ainda que tenha este título tão romântico, deveria ser mais atuante politicamente, não se preocupar com divagações filosóficas e futilidades poéticas, buscar autores relevantes para a sociedade e a economia, a democracia e o povo, ah, o povo oprimido e sofredor. Não, Joyce não. Definitivamente, Marx.
O cão revelou-se indigno de sua raça. Na segunda quadra, estava arfante, suado, com a língua de fora, e certamente, não conseguiria chegar a tempo. Se chegasse, não conseguiria farejar a bomba. Maldição. O tempo passando, o relógio da bomba em contagem regressiva. Pensava nela, tomado de amor, contrariando suas crenças. Nunca confiar na realeza. Não misturar trabalho e sentimentos pessoais. Continuou correndo, mas estava perdendo as forças e as esperanças. Não precisou consultar o relógio: a explosão o avisou que eram cinco da tarde.
Acabaram a noite sem muitas surpresas.
Sirenes, luzes, câmeras, bombeiros, corpos mutilados e fumaça, muita fumaça. Pessoas desgrenhadas, pedaços de vidro, de livros, de paredes destruídas. Cenário de destruição, atentado a bomba, como aparece volta e meia no noticiário. Em algum lugar, uma corrente com o escudo da realeza, e um pedaço de uma capa de Ulisses.
A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava.
O sangue estava na sala, no chão, nos tapetes, saindo de seus braços, pulsos abertos a navalha. Lembrava de momentos, cenas e sorrisos. Dor no peito, dor no coração, não pensar, não sentir. Cada vez mais nítida, oh, graças, ela.
O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração.
Era o brasão do Livro Dourado, premiando os heróis da segurança nacional, em homenagem ao agente que nos últimos três anos, deixou de lado a identidade e vida pessoal para proteger a princesa, e que preferiu a morte por não suportar a idéia de conviver com uma missão não cumprida a contento. Ninguém soube da história verdadeira: a idéia que ele não poderia suportar era a de estar no mundo sem ela. Simplesmente, era melhor enamorado do que agente.
Exercício: Juntar as frases em único texto.


(1) Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Moveu-se lentamente. Não queria que Flávia o visse chegando àquela hora da madrugada.
Uma voz embargada chamou sua atenção. Focou, de repente, a lanterna na direção. Viu-a deitada no sofá, assistindo televisão. Ela voltou-se para ele e contou, direto, sem rodeios que (2) Cedo tivera uma intuição: se comprasse o James Joyce jamais ganharia o Cervantes. Ele achou graça no senso de humor da namorada. Pelo menos não estava empunhando nenhuma adaga e espreitando no escuro da sala.
Isso até fez com que ele ficasse envergonhado. Já não era a primeira vez, nem a segunda, que fazia aquele papelão diante de Flávia. Sentia-se um cão, o (3) cão que se revelou indigno de sua raça. Desligou a lanterna e aproximou-se, com calma, sentindo até onde poderia ir, até onde poderia estar com ela diante das circunstâncias. Ele mal pode acreditar que (4) acabaram a noite sem muitas surpresas: (5) a TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. A culpa decidiu atormentá-lo. Teria sido muito melhor se ela houvesse esbravejado, gritado, socado seu peito com toda a energia. Mas, não, ela apenas estava ali, deitada, dormindo, sem culpa. A sua culpa, ao contrário aumentava cada vez mais, ganhava espaço diante da pureza de Flávia. Aquela pureza que ninguém tem mais nos dias de hoje. Não merecia sua raça bandida. E, sim, uma condecoração por sua alma limpa. A premiação dos justos. Dos que dormem tranqüilos como Flávia dormia. Cogitou que (6) O Governador, nesse dia, baixara um decreto instituindo uma nova condecoração: Aos puros de espírito, não pecadores, não devedores, seria garantido o sono recompensador, sem sobressaltos, sem interrupções. Aos pecadores, como ele, a insônia seria a insígnia da culpa. Ao lado de Flávia passou sua noite clara, assistindo o funeral e condecorando-se.
Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Notadamente Karina não estava em casa, era um alivio nos últimos tempos em que a coisas não andavam bem, ela não estar em casa quando ele chegava. Naquele fim de tarde o temporal havia derrubado alguns postes de luz da rua e a lanterna guardada no porta luvas do carro servia para alguma coisa, idéia de Karina que gostava de se prevenir de tudo. A briga que haviam tido pela manhã era pelo mesmo motivo de sempre. O aniversário de casamento e os malditos presentes. Ela queria uma coisa e ele nunca sabia o que comprar, ela com a mania de lhe dar livros.
Karina sabia que aquele dia seria mais complicado do que os outros, a comemorativa dos sete anos de casamento era mais apreensiva do que o possível terremoto que atormentava os moradores do pais nos últimos dias.
Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.
Foi ao shopping na tentativa de encontrar algo que surpreendesse Humberto, queria mais que tudo que ele ficasse extremamente feliz com o presente, mas se fosse um livro, ou algo relacionado à arte, com certeza as coisas ficariam piores. Nos últimos meses as brigas tinham aumentado, Humberto queria um cão, por que desde criança ele nunca pôde ter um cão, a mãe não permitia animais em casa. E muito menos ela. Se não tinham filhos, por que teriam cães?
Pensou no Cervantes, a obra completa do autor estava em exposição na vitrine da livraria quando ela entrou para comprar o Joyce, mas sabia que se a surpresa fosse ruim, ele não compraria algo que lhe agradasse.
Olhando pela escada rolante, avistou a pet shop, e os animais que enjaulados em cabines de vidro latiam e pediam atenção de adultos e crianças. Talvez pudesse ceder, deixar de ser turrona. Comprou um cãozinho, um puggy, bonito até.Caríssimo, com certeza ele não pagaria aquele valor por nenhum presente para ela. Mas amar tem dessas coisas, deixar na loja de animais um mês de salário apenas para ver o marido sorrir.
O resultado foi bom, Humberto ficou feliz, parecia um menino que brincava pela primeira vez. Nestor foi o nome escolhido para o animalzinho. Depois de algumas horas as coisas ficaram ruins.O cão revelou-se indigno de sua raça.Chorou alto, sujou o tapete da sala e fez xixi no sofá. O jantar foi deixado de lado. Acabaram a noite sem muitas surpresas.
Depois de alguns xingamentos que Humberto nunca deixava de dizer quando brigavam: desalmada, cruel, fria entre tantos outros Karina foi dormir, deixando ele e o cão na sala. Um belo aniversário de casamento. Afinal sete é um número cabalístico não é? O número do caos e da ordem. Caos? Ordem? Ou Cão e desordem?
Humberto ficou ali no meio da sala, olhando para Nestor que cheirava o tapete, lambia as próprias patas e na inocência que lhe cabia olhava distraidamente a sala que ainda recendia ao cheiro das velas que ele acendeu quando chegou em casa, a luz da lanterna não era suficiente para ele enxergar a comida que tinha que preparar. Era a vez dele de cozinhar o jantar de aniversário.
A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava, suas idéias de felicidade foram morrendo esses anos todos pensou. Como a princesa que foi morrendo aos poucos, com a doença lhe tirando os melhores anos da vida.
Nestor quebrou o silêncio com um rosnado para o nada, foi então que ouviu a noticia na TV, o Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração: um certo casal de velhinhos havia sido condecorados por dedicarem sua vida toda a cuidar de animais de rua. Definitivamente Karina precisava ouvir essa noticia. Mas não quis chamá-la. Ela estava feliz demais com seus livros novos.


Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro. Não queria ter a mesma visão de sempre. Estava cansado de todo aquele vazio, de todas aquelas sombras que faziam da casa a sua própria extensão. Nesses dias de clareza profunda e dolorida, Paulo costumava passar na livraria Colóquio. Um pouco de fantasia não retalharia ainda mais a sua realidade. E só uma coisa o consolava e não era, contudo, a livraria. A solidão só era menos bruta pela companhia de Cervantes, o cão dado de presente pela mãe. Desde cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes. E a mãe estava certa. Letrados são fiéis à dor, invejosos da própria piedade. Por conta disso, ela desistira dos livros e de todo e qualquer traço intelectual- só não deslembrara a ironia.

A mãe de Paulo preferia os cães. Todos os seus cães sempre foram Cervantes. Assim como agora se chamava o cão de Paulo. Uma herança vertical de dinastia canina. Mas até ele, o décimo segundo cão Cervantes, parecia obscuro sob aquele teto sem chão. Sentiria a morte o cão também? Haveria tempo para um próximo Cervantes? O cão revelou-se indigno de sua raça. E de todas as expectativas que lhe foram impostas. Era um dos espectros sem cor que transfiguravam a cena; como Paulo, o pobre coitado empunhando lanterna em rompante de lucidez.

Sentou-se na poltrona abóbora, quase marrom de tanto pó, tanto pêlo, tanto medo. Cervantes aos pés de Paulo era figura de consolo entre os poucos trapos de vida que o infeliz se permitia carregar. Acabaram a noite sem muitas surpresas. Um velando ao outro e à própria solidão compartilhada. Um ato de solidariedade às imagens que os assistiam.

A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa; ele, entretanto, apenas agonizava. Sim, o governador era um insensível, não havia dúvidas. Não importava a tristeza de Paulo, a impotência de Cervantes e nem a morte da doce princesa. Nem a audiência das moscas constrangia o governante. As imagens denunciaram toda a agonia pueril de quem sempre conhece o desfecho exato do amanhã. O Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração. Luto se respeita, é o que dizem os ortodoxos. Menos mal que Paulo e Cervantes dormiram a manhã inteira e o novo decreto lhes passou despercebido.

E as moscas? As moscas estavam longe, a varejar outros resquícios de final de ilusão. Algum outro Dom Quixote haveria de existir naquele Reino.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Logorrali de frases

Bom, eu me animo com o resultado do exercício maluco proposto pelos senhores Assis/Queneau...


“Ele chegou à porta, ligou a lanterna e deu um suspiro”. Não ia começar desse jeito porque nem sabia quem era “ele”. Mas seria alguém que gostasse de literatura. Fosse "ele" ou "ela". Então. Primeira frase: “Cedo ela teve uma intuição: se comprasse o James Joyce, jamais ganharia o Cervantes.” Mas que besteira. O Cervantes, quando ele nem escrevia em espanhol. Não que não pudesse merecer esse prêmio algum dia. Porque, a fim de contas, ele não era como aquele colega da Academia. O cão revelou-se indigno de sua raça, acabou escrevendo comerciais de iogurte. Ainda sem começo, recorreu ao jornal. Leu um pé de foto: “Acabaram a noite sem muitas surpresas”. Quem era que escrevia os pés de foto dos jornais? E quem se importava com a noite daquele casal da foto? A TV, na sala deserta e escura, transmitia para as moscas os funerais da princesa. Ele, entretanto, apenas agonizava sobre o teclado do computador. Podia se inspirar nessa morte que transtornara o país, que o virara de cabeça para baixo. De certo tal romance ia virar um best-seller. Foi para a cama dando voltas a essa idéia. E, no dia seguinte, a segurou. Porque o Governador, nesse dia, baixou um decreto instituindo uma nova condecoração para quem melhor louvasse a bela e jovem princesa morta.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Primeiro passo

Colegas,

Como combinamos esse será nosso espaço para postarmos os textos produzidos na Oficina.
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