terça-feira, 8 de julho de 2008

A personagem e o destino

Érico e seu destino

Acabara de fechar o dicionário e mirava o acaso: destino era a personificação da fatalidade a que supostamente estão sujeitas todas as pessoas e todas as coisas do mundo; sorte, fado, fortuna e seguiam as terminologias. Carla entrou rápido na sala e perguntou o quê Érico fazia ali sentado numa hora daquelas. Eu sempre ocupada, — disse — formigando pela vida.
— Podes continuar formigando por aí meu amor. Estou a pensar em nosso destino e hei de escrever a nossa história qualquer dia desses. Carla deu de ombros. Saiu. Ele ficou prostrado e deixou aos poucos o personagem ganhar a sua forma: inicia ao abrir a janela e admirar o jardim ensolarado. Ficção que se cria pesquisada e descrita com os destinos que a vida coloca para cada personagem. É necessário narrar a ação do personagem. To show and to tell, pensou. Ouviu uma voz atrás de si e virou-se.
— Todo o personagem necessita de mãe. — Dona Glória se acomodou na poltrona e acendeu um cigarro. Érico sorriu e beijou-a na testa.
— Precisa de mãe e destino. — Acrescentou ele. — De preferência uma mãe que não fume quando sua nora é médica e está na sala ao lado.
— Bobagem! Sem contar com a experiência de arrepiar com a qual se deve formar o conflito humano que há de envolver a história. Replica Dona Glória, com olhar furtivo.
Uma motivação meio doida invadiu Érico por instantes. Sentiu uma paixão sem fronteiras com a possibilidade de escrever algo, um roteiro de uma peça, algo assim que fosse. Seus olhos brilharam. Não ouviu as palavras seguintes. A concentração o absorvia.
Tomou em suas mãos uma folha de papel e, torcendo-a, simulou uma câmera. Virou-se novamente em direção à janela e “filmou” seu personagem e algumas reflexões. Não, muito vago para uma câmera. Não consigo fazer., pensou.
— Quem sabe um roteiro sobre uma loura doce, tipo aquela que transei há uns anos, quando solteiro, e que amava chocolates, lembra mãe?
— Lembro sim. Aquela que ficou enorme de gorda. Claro. Seria um ótimo roteiro. Mas onde se esconde o conflito. A história tem que ter o conflito. Quem sabe se essa loura ganhasse uma aposta e...
Érico perdeu-se de novo em devaneios e seus pensamentos não paravam mais de rodar, rodar, aquela loura, com chocolates, num bar, que ficou muito gorda e se encontrou com ele, quase se apaixonou e daí a Carla não aparecia quando os filhos sumiram e a separação já faz tempo quando for pra casa com seus três amiguinhos bichinhos com os quais conversava...
Carla entrou.
— Érico! Acorda! Que isso! Parece louco! Vem jantar. Que cheiro horrível de cigarro! Que envergonha dona Glória! Olha as crianças!
Carla saiu. Dona Glória teve que rir. Foram jantar.
Érico cruzou a porta e foi abalroado por um dos trigêmeos — Frederico — seguido de perto por Cácio e ultrapassado por Marcelo. Érico descreveu para sua câmera aquele espaço como se passeasse pela cidade: os carros eram as crianças e as empregadas eram os caminhões. A mãe — uma jamanta a ocupar espaço — e Carla, um trator que arranca tudo que encontra pelo caminho. Os sofás da sala de estar e as camas eram parques. A televisão, o teatro principal dessa cidade. Nela, não estava passando o desenho animado, mas sim, uma peça.
Os corredores e acessos que contornavam os móveis ao longo do apartamento equivaliam às ruas de uma grande metrópole. Havia restaurantes — os quais resumiam-se à cozinha, à sala de jantar e à churrasqueira — de onde brotavam os mais variados aromas culinários em dias alternados. Havia, como em toda a cidade moderna que se preze, aquilo que ninguém deseja ver, sentir ou ouvir. Descuidados podiam sofrer um assalto no meio da rua por pequenos pivetes — o cachorrinho de estimação. Essas ruas também podiam estar tomadas de lixo — brinquedos espalhados. A favela — na verdade a área de serviço — revelava a bagunça da vida. Local onde não existia sossego. As roupas emboladas, esperando para entrarem na máquina de lavar eram as pessoas da favela. Todas umas sobre as outras. Sem regras.
Os ciclos da lavadora e da secadora equivaliam aos ciclos diários: de dia — na lavadora — o trabalho; de noite — na secadora — o martírio familiar com a ausência de sono e conforto. Em ciclos constantes, essas pessoas atravancavam-se na sua existência.
Todos jantaram.
Érico se perdeu pela casa com sua câmera. Achou uma coisa: a banheira de hidromassagem. Algo capaz de interagir com o personagem.
Descreveu para sua câmera o espaço infantil — o quarto das crianças. Lá, encontrou Frederico e fingiu ser quem não é, segurando a câmera. Era a hora do diálogo — Faz de conta que sou um câmera-man. — ganhou a atenção do filho para a conversa.
Iniciou-se uma discussão e Érico mostrou e disse suas poucas razões. Viu-se contrariado pelos trigêmeos. Largou a câmera e mudou o seu destino, “personificação da fatalidade a que supostamente estão sujeitas todas as pessoas e todas as coisas do mundo; sorte, fado, fortuna” ao esbarrar no discurso direto de Frederico, no indireto de Cácio e nos implícitos do Marcelo. Exausto, largou a folha de papel.

Um comentário:

Vivi Grespan disse...

Jóia, Elisa! Todos os nossos "títulos" desfilaram no teu texto. Coisa boa guiar o destino com a narrativa.
Parabéns

Um beijo
Vivi